Elis Regina, 80 anos: como herdeiros mantêm vivo o legado da estrela
Maior voz feminina da MPB ganhará homenagens que vão de filmes a uma exposição

No início de 1982, Elis Regina escreveu em um caderninho suas resoluções e projetos para o Ano-Novo. Nelas, tratava das possíveis datas de seus próximos shows e registrava desejos para o futuro, como 26 músicas que gostaria de gravar e nomes dos compositores com os quais queria fazer parcerias futuras. A morte trágica da cantora poucos dias depois, na noite de 19 de janeiro daquele ano, impediu que esses sonhos se concretizassem. Apesar da saída de cena precoce, aos 36 anos, provocada por uma mistura fatal de álcool com pequena quantidade de cocaína, a artista foi como um cometa que iluminou a MPB de forma intensa e inesquecível — e deixou um rastro de gravações, discos e registros de shows que compõem um legado fundamental da música brasileira. Prova disso é a imensa agenda de celebrações em torno dos 80 anos de seu nascimento, que se completam em 17 de março.
A data ilumina não apenas a dimensão fenomenal da memória de Elis, mas também um fato positivo (e raro) no mundo da música: o trabalho criterioso e bem-sucedido de seus herdeiros para manter a obra da artista em evidência, e relevante do ponto de vista comercial. Enquanto desavenças entre familiares inibem a divulgação da obra de outros gigantes da MPB, de João Gilberto a Tim Maia, a marca Elis Regina movimentou nos últimos dez anos cerca de 50 milhões de reais, segundo fontes do mercado musical. Seus três filhos, João Marcello Bôscoli, de 54 anos, Pedro Mariano, 49, e Maria Rita, 47, trabalham para que novos projetos sobre Elis não parem de acontecer. “Fazemos a gestão de duas maneiras: apoiamos e facilitamos 99% das muitas iniciativas independentes que já existem sobre ela e, do outro lado, cada filho ajuda em sua área, seja na produção musical, que é meu caso, ou cantando, como meus irmãos. É um trabalho permanente”, diz João Marcello.

Um dos segredos do negócio é explorar o fabuloso baú da memorabilia de Elis de modo constante, mas com certa parcimônia — a divulgação a conta-gotas garante que sempre haverá algo mais para deliciar os fãs de tempos em tempos. E como há preciosidades na trajetória dela. Nascida em Porto Alegre, a gaúcha Elis dominou a arte do canto quando criança de forma instintiva, como gostava de frisar. Dona de uma voz potente de meio-soprano, mudou-se para o Rio nos seus 20 e poucos anos, e ascendeu ao estrelato nos grandes festivais da década de 1960, tornando-se uma das primeiras vozes femininas a despontar nesses eventos. Ao longo da carreira, eternizou os compositores das canções que interpretou nos mais diferentes gêneros: MPB, bossa nova, samba, baião e outros. Magnetizava o público no antológico show Falso Brilhante (1976), em que recontava sua história, e na tela da TV, em programas especiais da Globo nos anos 1970.

Com a efeméride dos 80 anos, claro, o ritmo das celebrações será mais intenso. Ao longo de 2025, Elis ganhará homenagens que expõem novas nuances pessoais e musicais. Um show em 28 de março no Espaço Unimed, em São Paulo, trará Ivan Lins, João Bosco e Fagner interpretando composições deles imortalizadas na voz de Elis. A história da artista será revista numa exposição no segundo semestre no MIS, também na capital paulista. E a mais profunda biografia da cantora, Elis Regina — Nada Será Como Antes (Companhia das Letras), ganhará neste mês versão revista e atualizada. Seu autor, Julio Maria, adicionou informações inéditas e centenas de declarações marcantes ao livro (veja o quadro). É dele a descoberta do caderninho com anotações sobre seus planos futuros. “Aqueles textos revelavam onde estava o radar de Elis nos dias que antecederam sua morte”, diz o biógrafo.

Da saúde mental à corajosa postura contra a ditadura militar, seus pensamentos impressionam pela atualidade e lucidez. Essa personalidade singular será relembrada com a devida força em nada menos do que cinco filmes que vêm por aí ao longo do ano, ainda sem datas de lançamento definidas. O documentário Elis por Ela Mesma, do cineasta Hugo Prata, vai resgatar os momentos memoráveis de entrevistas da estrela da MPB. Outra produção vai recriar ficcionalmente a histórica gravação do álbum Elis & Tom (1974), em Los Angeles, com a atriz Bianca Comparato no papel da cantora — o encontro dela com Tom Jobim, vale lembrar, já havia sido tema de um excepcional documentário no ano passado. O pacote se completa com três projetos nos quais Elis é redescoberta sob a visão do filho João Marcello na infância — dois desses filmes, um documentário e uma obra de ficção, se baseiam em seu livro Elis e Eu.

Em esforço notável para manter o legado de Elis em voga, João Marcello e seus irmãos não hesitam em se valer dos avanços da tecnologia — notadamente, das ferramentas de inteligência artificial — para restaurar pérolas de seu baú. Um aperitivo disso se deu em 2023, quando o uso de IA proporcionou uma espantosa e comovente “ressurreição” digital de Elis para cantar Como Nossos Pais em dueto com a filha, Maria Rita, numa propaganda da Volkswagen. “Foi uma imensa contribuição para a memória da nossa mãe”, diz João Marcello. O recurso valioso voltou a ser usado para recuperar a sonoridade de dez músicas gravadas em 1976 e que estarão no álbum Elis pra Sempre, a ser lançado ainda neste ano com produção do filho. O primeiro single, Para Lennon e McCartney, já veio à luz e acumula 380 000 audições no Spotify. Elis não viveu para ver seu 80º aniversário, infelizmente. Mas o brilho eterno da estrela continua entre nós.
Publicado em VEJA de 14 de março de 2025, edição nº 2935