Como um disco clássico do rock nacional quase morreu antes de nascer
José Emilio Rondeau narra os perrengues de produzir o primeiro álbum do Legião Urbana, que completa quarenta anos

Numa madrugada chuvosa no Rio de Janeiro, em meados de 1984, o Legião Urbana quase mudou o rumo de sua história — e do rock nacional. Após horas exasperantes tentando em vão acertar o andamento de uma música, durante as gravações do primeiro álbum da então novata banda brasiliense, o baterista Marcelo Bonfá estourou. “Eu toco bem quando quiser”, disparou, com insolência, ao ser cobrado pelos erros no estúdio da gravadora EMI Odeon em Botafogo. O chilique foi a gota d’água para o produtor da empreitada, o jornalista José Emilio Rondeau. “Levantei da cadeira, dei as costas para a mesa de som, disse ‘tchau’ e parti em direção ao estacionamento, para entrar no carro e voltar para casa. Tinha terminado ali minha participação no disco”, narra o próprio Rondeau no livro Será!, com lançamento previsto para 4 de junho e pré-venda on-line já disponível. O hoje clássico Legião Urbana, lançado em 1985 e que traz hinos de uma época como Geração Coca-Cola, Ainda É Cedo e a música que dá título ao livro, viu-se assim ameaçado de gorar antes de nascer. Foi preciso um deixa-disso dramático para evitar a saída do produtor: no meio da chuva, o cantor e letrista Renato Russo em pessoa (e todo ensopado) bateu na janela do Fiat Uno de Rondeau para implorar que o produtor não desistisse.

O relato de Rondeau sobre aqueles quatro meses de fúria no estúdio com o Legião Urbana surge num timing preciso: em 2025, completam-se quarenta anos do primeiro disco da banda que melhor simboliza a ascensão do rock nacional na década de 1980. Com sua crueza básica herdada do punk, o som registrado pelos jovens roqueiros no primeiro vinil do grupo fornecia a moldura perfeita para o vocal grave e as letras carregadas de urgência que fizeram de Russo — morto em 1996, aos 36 anos — um menestrel de sua geração. Mas o álbum Legião Urbana não foi só o passaporte do conjunto para a fama e o prestígio. Sua gravação tumultuada ilustra uma sina nem tão incomum assim na história do rock: a das estreias marcadas por tantos problemas na largada que só mesmo milagres explicam como essas bandas sobreviveram para atingir o sucesso e contar a história.

O caso do Legião é lapidar nesse sentido. Originalmente, o grupo era formado por três garotos com muitas ideias criativas e poucas credenciais como músicos — além de Russo, que acumulava as funções de cantor e baixista, havia Dado Villa-Lobos na guitarra e Bonfá na bateria. Uma fita cassete com suas composições iniciais, divulgada pelos amigos dos Paralamas do Sucesso (àquela altura já em alta no país), impressionou uma das poderosas multinacionais da indústria fonográfica no período, a EMI Odeon. A contratação pela gravadora era um sonho para os roqueiros, por ser a mesma dos Beatles. Mas a relação com a “major”, como eram conhecidas as intocáveis gigantes que dominavam o mercado da música, por pouco não implodiu o conjunto.
Nas duas tentativas iniciais de gravar seu début, o Legião fracassou. Primeiro, os jovens que mal sabiam tocar instrumentos se estranharam com o produtor Marcelo Sussekind, que havia conduzido o segundo disco dos Paralamas e era respeitado por seu conhecimento técnico. “A gente não conseguiu ter a sintonia certa”, diz Dado hoje, em depoimento para o livro. A segunda tentativa não foi menos traumática: Jorge Davidson, folclórico diretor artístico da EMI, inventou de colocar um produtor versado na country music, Rick Ferreira, para tornar o Legião mais palatável. Deu ruim de novo, claro. “Eles queriam fazer uma versão country da gente. Só que não deu certo. Não sabíamos fazer nada diferente do punk-rock”, testemunha Bonfá.

Diante desse retrospecto, fica mais simples entender o que estava em jogo naquela noite chuvosa em que o baterista deu piti no estúdio: a eventual demissão de Rondeau — terceiro produtor a encarar a espinhosa missão de extrair um disco daqueles garotos — poderia significar o desastre final para a banda. Após os reveses acumulados, Dado estava prestes a jogar a toalha e desistir de tudo. No meio do furacão, Renato Russo tomou uma medida extrema — cortou os pulsos — numa tentativa arriscada de se livrar da obrigação de tocar baixo e poder se dedicar só ao vocal, o que enfim aconteceu com a chegada de um quarto integrante, Renato Rocha (1961-2015).
Jornalista e crítico musical respeitado, mas que dava seus primeiros passos como produtor, Rondeau surgiu como um outsider capaz de apaziguar os ânimos. “A questão, talvez fundamental, para a coisa ter dado certo foi trabalhar com um produtor tão novato quanto nós”, admite Dado. Ainda assim, foram meses de grande engenharia psicológica e paciência para chegar ao registro simples e irresistível que colocou o Legião Urbana na rota do estrelato.

As dificuldades para conseguir gravar, curiosamente, são um óbvio ponto de contato entre a banda brasileira e seus ídolos dos Beatles. Assim como Bonfá, Ringo Starr sofreu no estúdio. Ao chegar ao local, viu que havia por lá um profissional para substituí-lo, contratado pelo produtor. A missão dada a Ringo era tocar apenas um pandeiro nas gravações do primeiro compacto do grupo, Love Me Do, em 1962. Anos mais tarde, o produtor George Martin pediu desculpas a Ringo pela desfeita. No anedotário do rock, há diversos outros casos célebres de início atrapalhado. Os Sex Pistols são um exemplo notório: a banda punk inglesa era tão ensandecida que conseguiu gravar um único álbum, o clássico Never Mind the Bollocks (1977) — e o trabalho apenas se viabilizou quando o baixista e doidão Sid Vicious pegou hepatite e, providencialmente, foi trocado por um músico profissional. Alguns discos que abriram as portas para carreiras bem-sucedidas — como Morbid Visions (1986), estreia dos metaleiros nacionais do Sepultura — ostentam a precariedade de forma explícita. Gravado num estúdio de baixa qualidade em Belo Horizonte, o álbum é cheio de falhas sonoras, debilidade realçada pelos vocais vociferados em inglês macarrônico. Com seus perrengues agora revelados, a gênese do Legião Urbana se soma a uma velha — e ruidosa — tradição do rock.
Publicado em VEJA de 16 de maio de 2025, edição nº 2944