“Canto sobre levar chifre gay”, diz Gabeu sobre o queernejo
Filho do cantor sertanejo Solimões, o músico se tornou expoente do subgênero do ritmo caipira e agora disputa o Grammy Latino

Não será uma disputa fácil. Na próxima quinta-feira, 17, Gabriel Felizardo, o Gabeu, de 24 anos, uma das novas apostas da música sertaneja, concorrerá no Grammy Latino na categoria de melhor álbum de música sertaneja com Chitãozinho & Xororó, Matheus & Kauan, Lauana Prado e com a grande favorita, o projeto Patroas, de Marília Mendonça e Maiara & Maraísa. Mas para o músico paulista, natural de Franca, só de estar lá com seu álbum de estreia, Agropoc, já será uma vitória. Filho do cantor sertanejo Solimões, da dupla com o Rionegro, Gabeu inovou no gênero ao compor músicas sertanejas com temática gay em um ambiente dominado pelo machismo.
Com o álbum Agropoc (que faz um trocadilho com a expressão Poc, usada para designar alguns membros da comunidade gay) ele se tornou expoente de uma nova vertente do sertanejo, o queernejo. Gabeu conversou com VEJA sobre o novo projeto e as expectativas do Grammy Latino. “Vamos continuar cantando sobre levar chifres, mas vai ser sobre levar um chifre gay. A gente gosta da sofrência, gosta de cantar sobre a dor do amor, da dor do chifre”, contou o artista. Leia a seguir os principais trechos.

Você foi indicado ao Grammy Latino logo com seu disco de estreia. Quais são as expectativas para a cerimônia? Fiquei muito surpreso e muito feliz de estar ao lado de nomes gigantescos. É uma galera que é referência no meu trabalho e estar ao lado deles é absurdo. Eu pensei: “O que está acontecendo?”.
Você se tornou um expoente do queernejo. Como você explica esse novo gênero do sertanejo? É o termo que usamos para falar do movimento de artistas LGBTQIAPN+ na música sertaneja, levantando essa bandeira aliado ao trabalho musical. Temos orgulho das nossas raízes caipiras e de ser queer. Musicalmente, o queernejo ainda é um movimento muito novo e ainda queremos testar várias coisas, misturar com outros ritmos, outros gêneros e dar uma estética mais pop. Estamos em uma fase de experimentação.

Quais são suas influências musicais? Meu pai, Solimões, é claro. Cresci com a música dele em casa, né? O ano que eu nasci, 1998, foi quando eles estouraram com a música De São Paulo a Belém. Não tinha como fugir. Eu nunca me identifiquei, no entanto, com as figuras heteronormativas do sertanejo e por isso eu acabei buscando outros tipos de referências e me refugiando na música pop. Hoje, por exemplo, Lady Gaga é a minha diva maior. Sou muito fã. Quando ela lançou Joanne, eu pensei: “Foi feito para mim”. Me inspiro também em outros artistas da música country, como Shania Twain e Orville Peck, que é um cantor que, sonoramente é muito característico do country, mas é gay e também trabalha o discurso da representatividade nesse estilo musical.
Como você lida no ambiente machista do sertanejo? Quando eu lancei a música Amor Rural, uma música sertaneja com letra queer, eu tive muito medo e muitas incertezas se esse tipo de música teria espaço no mercado. Será que eu teria público? Foi um tiro no escuro. Poderia ter dado tudo errado. Eu poderia ter desagradado tanto os sertanejos quanto o público queer. Minha ideia é oferecer para o público que consome música pop e que talvez nunca tenha se interessado por sertanejo, uma opção pela qual ele possa se interessar.
Você chegou a sofrer ataques homofóbicos entre os sertanejos? Nunca aconteceu nada grave, nada escancarado. O respeito que as pessoas têm pelo meu pai sempre foi uma proteção para mim. Sempre senti alguns olhares, burburinhos, coisas assim. Mas nada direto.
Por que não vemos nenhum cantor sertanejo abertamente gay? Eu acho que tem bastante, mas todos estão a serviço de uma heteronormatividade muito grande. Nos últimos rolês que eu fui na minha cidade, eu vi muitos gays. Mas o ambiente sertanejo parece que exige que você performe uma heteronormatividade. Se você é mulher, tem que ser muito feminina. Se você é homem, tem que ser muito masculino. Qualquer coisa que saia disso causa desconforto. Uma das razões para os cantores sertanejos gays não saíram do armário é que não existe um ambiente seguro e confortável para eles se assumirem. Esse processo tem que ser cada vez menos doloroso até chegar a um momento em que a sexualidade seja só um detalhe.
Como foi a reação do seu pai quando você revelou para ele que era gay? Eu tinha 16 anos. Ele foi a primeira pessoa da minha família para quem eu contei. Ele e minha mãe são separados e eu morava com a minha mãe. Meu pensamento foi: como eu não moro com ele, se der alguma coisa errada, não vou precisar encará-lo todos os dias. Mas deu tudo certo. Ele ficou feliz por eu contar. Ele disse que já sabia, mas que jamais iria me perguntar. Depois de muito tempo é que eu contei para o resto da minha família e nunca tive grandes conflitos com relação a isso.

E como seu pai encarou sua carreira musical? Desde o começo ele sempre me apoiou, mesmo antes de eu decidir qual rumo tomar musicalmente. Ele sempre me encorajou a gravar o que eu quisesse e a não ficar indo pela cabeça dos outros. Quando falei que eu queria gravar sertanejo com temática queer, ele apoiou.
Há outros artistas queer que estão fazendo música sertaneja. Como vê esse movimento? Acho muito importante que existam nomes como a drag queen Reddy Allor, a cantora não binária Gali Galó e a trans Alice Marcone, fazendo música sertaneja, especialmente neste mercado dominado por homens brancos. Consequentemente, não há uma narrativa de letras e músicas muito variadas. Quanto mais diversidade, mais narrativas, estéticas e letras diferentes teremos. Continuaremos cantando sobre levar chifres, mas vai ser sobre levar um chifre gay. A gente gosta da sofrência, gosta de cantar sobre a dor do amor, da dor do chifre. Isso vai se manter. O que muda é o ponto de vista. Foi o que aconteceu com o feminejo, por exemplo. O queernejo tenta fazer a mesma coisa do ponto de vista queer.
Cantar música sertaneja foi uma maneira de ficar em paz com suas raízes? Sim. Durante muito tempo eu não estava em paz com as minhas raízes. Na minha infância, eu sempre acreditei que eu precisava renegar as minhas raízes para reafirmar minha sexualidade, mas o sertanejo faz parte de mim. Eu achava que as duas coisas não poderiam coexistir harmoniosamente. É muito cruel a gente ter que negar as raízes para reafirmar outra coisa. Ou negar a sexualidade em prol das raízes. Sempre parecerá que está faltando alguma coisa.