A espantosa revolução dos avatares de estrelas musicais recriadas pela IA
Do ABBA ao Kiss, artistas estão moldando suas imagens digitalmente em shows com reproduções hiper-realistas
Há um mês, quando o Kiss tocou o último acorde de seu hit Rock and Roll All Nite no Madison Square Garden, em Nova York, encerrando a infindável turnê de despedida The End of the Road, havia entre os fãs a sensação de que, bem, a tão alardeada aposentadoria talvez não fosse para valer mais uma vez. Embora os quatro integrantes, com idades entre 63 e 74 anos, já não suportem (literalmente) o peso de seus figurinos, os lucros com os shows têm compensado o sacrifício de permanecer na estrada por mais de cinco décadas.
Ao final da apresentação, veio o sinal de que, graças a uma nova tecnologia, a banda encontrou enfim um jeito de curtir a velhice sem parar de faturar nos palcos. Nos telões, os quatro integrantes surgiram recriados digitalmente como avatares com feições hiper-realistas para tocar God Gave Rock and Roll to You. Livres do peso da idade e das limitações da física, os personagens encarnados pelos músicos botaram para quebrar: Starchild soltava fogos de sua guitarra, Demon abria assustadoras asas e cuspia fogo, Catman tocava uma inacreditável bateria flutuante e Space Man pousava majestoso na Terra.
Com esse gran finale, o Kiss anunciou aos fãs que se iniciava ali uma nova era da banda — e um novo capítulo na larga crônica de farsas da história do rock’n’roll. Os fãs, ao que parece, vão engolir mais esse truque. Ele engrossa uma tendência que ganhou tração com o avanço da inteligência artificial: shows ultrarrealistas, nos quais artistas já idosos ou mortos são substituídos em cena por versões digitais de fidelidade e desenvoltura assombrosas. Quase num passe de mágica, é como se eles recobrassem o vigor de seu auge sob a forma de projeções holográficas.
Kiss – Por trás da máscara: A biografia oficial
Por trás da transformação do Kiss está a empresa sueca Pophouse — a mesma que criou no ano passado o bem-sucedido espetáculo ABBA Voyage, com avatares (ou “abbatars”) do quarteto pop em suas versões mais jovens, atração de um espetáculo ao vivo numa arena com capacidade para 3 000 pessoas no Parque Olímpico de Londres. O grupo, que havia acabado de lançar o primeiro disco de inéditas em quarenta anos, queria fazer shows ou um filme sobre o novo trabalho, mas a saúde dos integrantes, com idades entre 73 e 78 anos, não permitia. Com a ajuda da Industrial Light & Magic, empresa fundada por George Lucas, vencedora de vários Oscars e responsável por desenvolver tecnologia de captação de movimentos de filmes como Star Wars e Avatar, o quarteto teve seus movimentos registrados por meio de sensores colocados em seus corpos. Posteriormente, suas performances ao vivo foram recriadas à perfeição nos avatares.
Não se trata, vale esclarecer, de hologramas como aqueles de iniciativas de alguns anos atrás que reviveram ídolos como o rapper Tupac Shakur e os cantores Roy Orbinson e Elvis Presley. Na época, vídeos dos artistas eram retrabalhados para causar uma sensação tridimensional — um recurso rudimentar perto dos avanços de hoje. O que se vê no palco agora é uma criação totalmente digital e de efeito muito próximo do real. A partir daí, é possível fazer com que eles contem piadas, interajam entre si e até cantem músicas atuais, dando um ar de naturalidade à apresentação. O efeito 3D é proporcionado por um telão posicionado no centro do palco com altíssima resolução (impressionantes 65,3 milhões de pixels, a 50 quadros por segundo). Desde a estreia, mais de 2 milhões de ingressos foram vendidos, arrecadando cerca de 200 milhões de dólares. O show deveria ficar em cartaz até o fim do ano passado, mas foi prorrogado indefinidamente.
Poucas bandas parecem tão aptas a aproveitar esse filão quanto o Kiss. Especialistas em explorar comercialmente sua marca, os roqueiros do grupo surgido em Nova York nunca tiveram pudor em dizer que gostam de ganhar dinheiro, vendendo desde histórias em quadrinhos até preservativos. A solução dos avatares digitais se mostrou perfeita para perpetuar o quarteto. Para a criação do show com recursos da IA, contrataram o profissional Thierry Coup, responsável por atrações dos parques da Disney e da Universal. Até a língua quilométrica e as caretas do líder e baixista Gene Simmons foram gravadas com o músico em estúdio para a performance do avatar ser perfeita.
A evolução da tecnologia trará não só a possibilidade de uma aposentadoria mais confortável para os artistas veteranos: será possível turbinar os ganhos da indústria musical também com ídolos mortos. Elvis Presley, cujos direitos de imagem pertencem à Authentic Brands Group, ganhará um espetáculo semelhante em novembro, também em Londres, criado pela empresa Layered Reality. Ironicamente, será a primeira vez que um show dele acontecerá no exterior, pois em vida Elvis jamais se apresentou fora dos Estados Unidos e Canadá. A turnê viajará o mundo e, claro, passará por Las Vegas.
A nova tecnologia, contudo, levanta um debate: a recriação digital pode causar a mesma emoção? A julgar pelo ABBA, a resposta é sim. Quem viu garante que estar num ambiente com pessoas que compartilham a mesma paixão fez com que se embarque na fantasia digital. Com o empurrão da IA, o show não vai parar.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876