Vladimir Nabokov e o pedófilo como narrador
Se dependesse do Santander Cultural, um dos maiores romances do século XX jamais teria chegado ao público

Faz 40 anos que Vladimir Nabokov morreu. Consagrou-se como autor do mais ambíguo e misterioso romance do século XX, Lolita, que pôs um pedófilo descarado (e incrivelmente esperto) para narrar a história. Seria o caso de recolher os milhares de exemplares do livro que circulam em língua portuguesa? Claro que não, que bobagem. Uma coisa é incentivar o crime; outra completamente diferente é discutir o tema através da arte.
Pois é de arte, e do enrede do romance, que vamos tratar aqui:
Humbert Humbert, o tal narrador, casa-se com a insuportável Charlotte porque no fundo deseja possuir Lolita (que acabou de completar 13 anos!). Iludida pelo que parecia ser um amor tardio em sua vida, Charlotte manda a filha para um acampamento de férias a fim de aproveitar ao máximo a lua-de-mel. Graças, porém, ao diário do indiscreto Humbert, Charlotte descobre as reais intenções do marido e acaba morrendo atropelada. Passado o enterro, enquanto Humbert viaja em busca de sua presa, é assaltado por uma dúvida atroz: será que a diretora do acampamento suspeitará do “pai adotivo” de Lolita?
Ele resolve ligar de um orelhão, cena narrada no parágrafo que segue:
“Holmes, a diretora do acampamento, informou-se que Lolita saíra na segunda-feira (estávamos na quarta) para uma excursão com seu grupo e só voltaria naquela tarde. Será que eu me incomodaria de chegar amanhã, e qual era mesmo o motivo… Sem entrar em pormenores, disse que sua mãe tinha sido hospitalizada, que seu estado era grave, que a menina não devia saber que era grave e que deveria estar pronta para partir comigo na tarde seguinte. As duas vozes se despediram numa explosão de calorosa simpatia e, devido a alguma falha mecânica, todas as moedas caíram de volta com o barulhinho metálico de quem ganhou no caça-níqueis”.
Nabokov não se contenta em montar um relato funcional da cena, tampouco se limita à utilização de metáforas fora do contexto. Para destacar a sorte grande de um canalha, ele transforma o orelhão em caça-níqueis e faz com que o “barulhinho metálico” chegue aos ouvidos do leitor como um acorde de sordidez. Mas esse não é um achado fortuito no meio do livro. Cada parágrafo de Lolita possui tiradas semelhantes à queda das moedas. Só existe um nome para isso: genialidade.
Membro de uma aristocrática família russa, Nabokov desfrutou de uma educação principesca, tendo adquirido grande interesse em literatura, línguas estrangeiras, xadrez e borboletas. Devido à revolução bolchevique, teve de abandonar a Mãe Rússia e viver o resto da vida no exílio, o que fomentou a sua vocação cosmopolita. Depois de largas temporadas em Cambridge, Berlim e Paris, emigrou para os Estados Unidos, onde consolidou sua carreira de romancista, até se retirar para Montreux, na Suíça, onde morreu em 1977.
Não é de admirar que fosse dono de uma despropositada vaidade intelectual. Detestava os críticos freudianos — a quem ironicamente batizou de “delegação vienense” — e jamais escondeu o ódio que sentia por seus desafetos, fosse o notório Edmundo Wilson ou o obscuro George Adamovitch. Por ocasião da morte deste último, Nabokov não teve pudores de pintar e bordar sobre o cadáver: “Adamovitch de fato só tinha duas paixões na vida: poesia russa e marinheiros franceses”.
Parece ser uma verdade universal que, no trato com os inimigos, os gênios desconheçam qualquer forma de limite.