Se Olavo Bilac caía em fake news, o que será de nós?
As fake news são tão antigas quanto a imprensa. O grande problema é que aumentaram em quantidade e abrangência

Poucos sabem que Olavo Bilac (1865-1918), mais conhecido como o príncipe dos poetas parnasianos, ganhou a vida como jornalista e foi um dos articulistas mais lidos durante a belle époque carioca. Culto e viajado, escreveu com brilho sobre temas que ainda hoje estão em pauta: saúde pública, crueldade contra os velhos, maus tratos a animais, emancipação da mulher, literatura e cultura em geral.
No entanto, quando tratou da Guerra de Canudos… que desastre!
Numa crônica publicada em dezembro de 1896, reproduz a voz do atraso ao lamentar que os milhares de sertanejos amotinados no sertão da Bahia não se contentassem em peregrinar pelos desertos e comer gafanhotos como São João Batista.
E prossegue, duro:
— Os fanáticos de Antônio Conselheiro “não podem passar sem pão, sem carne, sem cachaça, e sem mulheres. E, pois, saqueiam vilas, assolam as aldeias, matam os ricos, escravizam os pobres, defloram as raparigas, e assim vão vivendo bem, bem combinando os sacrifícios do viver religioso com as delícias do comer à tripa forra”.
(A contradição do parágrafo acima — orgias em meio à religiosidade — é um belo indício de que estamos diante de uma fake news. Além do mais, sabe-se hoje que o Conselheiro não permitia álcool e prostituição em Canudos).
No mesmo texto, queixando-se da lengalenga burocrática e política surgida com a guerra, exige das autoridades uma ação mais incisiva: “Em qualquer parte do mundo, esse pessoal seria baleado, corrido a pedra e a sabre, sem complicações, sumariamente”. E não termina a crônica antes de execrar a “imprensa indígena”, isto é, aqueles poucos jornais que não divulgavam o Conselheiro como louco e os sertanejos como fanáticos.
Em março de 1897, num tom fúnebre e hiperbólico, Bilac chora a aposentadoria de Machado de Assis, seu mestre, que poderia usar a coluna para narrar a “grande desgraça” com tintas mais sóbrias e concisas. A “grande desgraça” era a notícia de que o Coronel Moreira César, o mesmo que meses antes transformara Desterro em Florianópolis com um banho de sangue, morrera num ataque a Canudos.
Mas em outubro do mesmo ano pôde acender as luminárias da sua crônica para comemorar a desafronta: “o Arraial maldito foi desmantelado”. Fazendo piadinha com a “imundície das jagunças” subjugadas, esquecia-se o poeta, e com ele o resto do Brasil, que aquela foi uma guerra com pouquíssimos prisioneiros. Mulheres, velhos e crianças, quase todos foram obrigados a vestir a “gravata vermelha”, ou a degola, uma tradição que o exército brasileiro trouxera do Paraguai.
Segundo Alfredo Bosi, “Bilac fez coro com os jornalistas mal informados e ideologizados da época; e, nesse particular, não foi mais perspicaz do que a maioria dos intelectuais seus contemporâneos, que viam nos jagunços de Canudos um (…) perigo para a jovem República e a civilização ocidental”. Nas palavras de hoje, Bilac usou o seu espaço privilegiado na imprensa para dar eco a uma série de fake news que culminaram num dos massacres mais brutais e inúteis da nossa história.
Interessante, porém, é que o próprio Bilac tinha consciência de que pudesse estar a serviço de algo no qual não acreditava. “Não há morte para as nossas tolices!”, escreveu em 1901. “Nas bibliotecas e nos escritórios dos jornais, elas ficam, as pérfidas!, catalogadas; e lá vem um dia em que um perverso qualquer, abrindo um daqueles abomináveis cartapácios, exuma as malditas e arroja-as à face apalermada de quem as escreveu…”
Resta saber se a mesma desforra das palavras atingirá os que hoje vivem de produzir e difundir fake news.
P.S.: as informações acima, incluindo o depoimento de Alfredo Bosi, foram retiradas da trilogia Bilac O Jornalista, de Antonio Dimas, um exaustivo trabalho de garimpagem literária graças ao qual temos acesso a praticamente toda a produção jornalística de Olavo Bilac.