A outra reforma de Lutero
A ideia de que os fiéis deveriam ter acesso aos textos sagrados transformou Lutero num dos maiores difusores do livro e da leitura

Hoje faz 500 anos que Martinho Lutero fixou as suas 95 teses nas portas da catedral de Wittenberg. Foi um gesto ingênuo e ao mesmo tempo corajoso. Em sua maioria, as teses questionam a autoridade papal e pregam contra a leviandade das indulgências (passaportes para o céu que a Igreja vendia aos fiéis). Todo mundo, atualmente, critica o papa ou qualquer figura que tenha o mais leve cheiro de autoridade, mas naquela época Lutero só não foi queimado ou enforcado porque teve a proteção de príncipes alemães que estavam exaustos de mandar dinheiro para o Vaticano.
Na prática, as 95 teses impulsionaram a Reforma Protestante que mudaria o curso da Europa e redefiniria as bases da cultural ocidental. Uma nova forma de se relacionar com o divino passou a coexistir com o milenar domínio da Igreja Católica. A princípio Lutero queria que os fiéis se dirigissem diretamente a Deus, sem a intermediação de instituições terrenas, mas as circunstâncias o levaram a criar um culto que dispensava a intercessão dos santos e reduzia os sacramentos a dois essenciais: batismo e eucaristia.
Para os historiadores, o êxito da Reforma se deve ao importante fato de que Lutero estava no lugar certo e na hora exata. A passagem da economia feudal para o nascente capitalismo exigia uma postura religiosa mais entusiasmada em relação à prosperidade, algo até então execrado pela Igreja Católica. Sociólogos como Max Weber fundamentaram uma ideia que já estava clara aos olhares mais atentos: sem a “dignificação pelo trabalho” de Lutero, o capitalismo não teria as condições ideológicas necessárias para se desenvolver na Europa.
Algumas das nações mais desenvolvidas do mundo são “protestantes”, e isso certamente significa alguma coisa.
Mas a maior contribuição de Lutero, algo que escapa à esfera religiosa ou até mesmo econômica, tem a ver com o acesso que ele deu aos textos sagrados. Até então a Bíblia era difundida apenas em grego ou latim, línguas distantes do homem comum, de modo que a interpretação da palavra de Deus era monopólio dos padres. Lutero desejou que todos lessem a Bíblia, por isso deu um jeito de traduzi-la para o alemão. Ele estava lutando por suas convicções teológicas, mas ao mesmo tempo estava arriscando o pescoço para defender a importância do acesso ao Conhecimento.
Se Gutemberg, com a invenção da imprensa, criou o hardware da leitura, Lutero forneceu o software ao quebrar o tabu de que a sabedoria seria divinamente reservada a homens especiais do clero e da nobreza. Isso fez com que o pai da reforma se transformasse num dos maiores difusores do livro, um instrumento que proporcionaria revoluções ainda mais profundas que a religiosa. Não é por acaso que alguns dos maiores núcleos de leitores do planeta podem ser encontrados — de novo — em países de confissão luterana.
O herói da história também teve os seus pecados? Claro que sim. Além de demonizar os judeus, foi inclemente com os camponeses que, graças à rebelião inicial contra o catolicismo, rebelaram-se também contra os seus senhores. Nos mesmos escritos em que propunha reformas na “ordem do céu”, Lutero se preocupava em manter intacta a “ordem da terra”. Chegou a justificar muitos dos massacres que mancharam a Alemanha do seu tempo. É por isso que deve ser tratado como uma personalidade histórica, não como o portador de alguma verdade messiânica irretocável.
Ele mesmo tinha consciência disso. “A doutrina não é minha”, escreveu no fim da vida. “Como pode convir a mim, um miserável saco de pó e cinzas, dar meu nome aos filhos e às filhas de Cristo”? Suplicou às primeiras comunidades protestantes que não se autodenominassem luteranas, apenas cristãs. Nisso não foi ouvido.