O maior Brasileiro da história
'Comentarista do Futuro’ viaja até jogo histórico de 1970, quando os clubes disputaram única competição com os 22 jogadores do tricampeonato no México
Foi cheiro de chumbo que senti ao desembarcar ontem nesta São Paulo de 1970, misturado a esse inebriante elixir de euforia que hipnotiza quase todos vocês, torcedores, após a recente conquista do Tri no México. Era dia de jogão. Os dois principais candidatos ao Robertão frente à frente: Palmeiras e Fluminense. Um deles, posso adiantar, será o campeão do melhor campeonato do mundo, disputado no país que é o epicentro do futebol no planeta. Afinal, em que outro lugar existe uma competição que tem em campo os 22 jogadores que ganharam a Copa e deram aula de como jogar bolar? Aproveitem, meus caros, aproveitem… Trago do futuro notícias pouco animadoras. Em 2021, de onde venho, o Brasil disputará Copa América com apenas 4 dos 22 convocados atuando no Brasil e disputando o título nacional. Três anos antes, na Copa de 2018, serão 3; no Mundial de 2014, 4. Em 2010? Só 3 também. Ou seja: um campeonato brasileiro como esse nunca mais teremos. É chumbo grosso!
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Estão na briga pela taça, vocês sabem, o Santos de Pelé, o Cruzeiro de Tostão, o Corinthians de Rivelino, o São Paulo de Gérson, o Botafogo de Jairzinho, e por aí vai… Ontem foi possível admirar três campeões desfilando no Morumbi: Félix e Marco Antônio pelo Fluminense; Baldocchi pelo Palmeiras (Leão, machucado, ficou fora). Curiosamente, o craque do jogo foi preterido na lista de Zagallo para a Copa: Flávio, autor dos três gols na vitória tricolor por 3×0. O futuro será injusto e cruel com o atacante. Nunca mais vestirá a amarelinha, mesmo tendo feito 8 gols nos 18 jogos em que atuou pela Seleção. Mais que isso: encerrará a carreira contabilizando 1.040 gols (448 em jogos oficiais, segundo “Os Grandes Artilheiros”, edição especial que a revista Placar lançará em 2005), feito ainda mais esquecido e ignorado. “O Brasil não ficou sabendo”, dirá o artilheiro daqui a décadas. Para alguns jogadores, o tempo é um marcador implacável: anula os fatos e faz o povo apagar em sua memória. No futuro, muitos também vão esquecer como é viver sob os anos de chumbo da ditadura.
Os times chegaram ao confronto de ontem liderando os dois grupos na Taça de Prata, ou Roberto Gomes Pedrosa. Já aviso a todos que será esta a última vez que chamaremos assim a competição nacional. A partir do ano que vem trocaremos pelo nome mais simples e óbvio: “Campeonato Brasileiro” mesmo, e zé fini. Mas triunfos épicos como o que se avizinha este ano serão respeitados. Depois de muita celeuma, a partir de 2010 as estatísticas oficiais contabilizarão títulos e dados desde 1959, reunindo resultados da Taça Brasil, do Robertão e do que ainda vem adiante. Nesta matemática aplicada a mais de sessenta anos, em 2021 se, por um lado, um desses dois clubes que mediram forças ontem será o campeão do maior campeonato nacional de todos os tempos, como já demonstrei, o outro chegará como o maior campeão brasileiro da história, somando 10 conquistas. Façam suas apostas…
Antes do bola rolando, passei os olhos nas sessões esportivas dos jornais e vi que o Palmeiras era apontado como favorito. A fragilidade do Flu residiria debaixo dos paus, na presença do “irregular” Félix – outro titular absoluto no escrete dos injustiçados do futebol. Craque em calar a boca dos seus críticos, o Papel aprontou mais uma das suas, defendendo um pênalti duvidoso marcado pelo juiz e batido por César, isso com o placar ainda em 0x0. Não demorou pra começar o show particular de Flávio, que aos 25’ cobrou com perfeição a falta que abriu a goleada. Depois viriam os outros dois tentos, numa atuação antológica, maculada pelo mau humor do juiz Sebastião Rufino, que o expulsou aos 13’ da segunda etapa. Cá pra nós: só um sujeito muito de mal com a vida dá cartão vermelho a um jogador que já fez três gols numa partida. Estamos mesmo vivendo tempos de arbítrio…
Delícia foi poder acompanhar no gramado o folclórico Cafuringa, essa espécie de reedição mal acabada de Garrincha, ofuscado talvez justamente pela injusta comparação. “Futebol moleque”: assim a mídia do próximo século vai se referir a este estilo alegre de jogar bola, sempre com saudosismo, pois atacantes assim serão tão raros como os gols do ponta-direita. Cafu (apelido que, anotem, vai inspirar o batismo de um futuro lateral cujo nome entrará na história) vai encerrar a carreira sem superar a fama, justificada, de driblar, driblar e não saber botar a pelota nas redes. Na Hora H, a leveza com que ultrapassa seus marcadores desaparece. Ganha pés-de-chumbo.
Foram muitos os prazeres no Morumbi. Dudu, Denílson, Samarone, Lula e, claro, Ademir da Guia. Embora ontem tenha sido quase que totalmente anulado pelo baixinho Didi, do tricolor, o Divino é sempre um espetáculo à parte, um bailarino dos gramados. Mais um para quem o futuro não reserva grandes momentos na Seleção Brasileira. Preterido no escrete do México, ainda terá chance de mostrar sua elegância ao mundo na próxima Copa, mas só vai jogar uma partida, sem grande relevância na disputa, e pior: será substituído no intervalo. Chumbo amigo!
Para tranquilizar as duas torcidas, já revelo que o resultado de ontem pouco afetará as equipes. Ambas estarão no quadrangular final que vai decidir o campeonato. O Fluminense, acreditem, sem Flávio, contundido. O substituto será Mickey, que entrou ontem e sobre quem só posso adiantar uma informação: serão momentos de Disneylândia no Maraca…
No passado, por duas vezes Palmeiras e Fluminense se encontraram em jogos decisivos. Em 1933, o alviverde derrotou o rival ao conquistar seu primeiro Torneio Rio-São Paulo; em 1960, foi a vez do tricolor das Laranjeiras superar o Palmeiras, erguendo a taça do mesmo torneio entre as duas cidades. No próximo século, a história vai sorrir mais para os cariocas, que conquistarão dois Brasileiros (já então disputado em sistema de pontos corridos) tendo nas rodadas finais confrontos fundamentais com o clube paulista. Desde o primeiro embate, lá em 1926, com vitória do Palestra Itália, até o jogo que vou assistir quando voltar a 2021, serão 113 jogos, com 61 vitórias do Verdão contra 35 dos tricolores. Mas como sempre, quando o assunto são números estatísticos no futebol, há controvérsia. O Palmeiras, podem vibrar torcedores do time, estarão liderando o Brasileiro. Ao Fluzão, que em 2021 terá um bom time, mas com bem menos investimentos no elenco, restará a esperança de surgir um novo Flávio que reverta a expectativa de resultado no jogo. Mas jogadores não são como ditadores – que, quando menos se espera, reaparecem.
FICHA TÉCNICA
Palmeiras 0 x 3 Fluminense
Estádio: Morumbi
Local: São Paulo
Data: 7 de novembro de 1970
Árbitro: Sebastião Rufino
Público: 22.096 pagantes
Renda: Cr$ 147.845,00.
Gols: Flávio, aos 25′ e 37′ (1º tempo) e aos 9′ (2º tempo)
Expulsões: Flávio, aos 13′ (2º tempo) e Kraus, aos 19′ (2º tempo)
Palmeiras: Neuri; Eurico, Baldocchi, Nelson e Dé; Dudu e Ademir; Edu, Hector Silva (Fedato), César e Pio (Kraus). Técnico: Rubens Minelli
Fluminense: Félix; Oliveira, Galhardo, Assis e Marco Antônio; Denílson e Didi (Silveira); Cafuringa, Flávio, Samarone (Mickey) e Lula. Técnico: Paulo Amaral
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