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Sobre heróis e bandidos (por Jaime Pinsky)

O herói que correu risco de vida é um clássico

Por Jaime Pinsky
Atualizado em 18 nov 2020, 19h55 - Publicado em 5 out 2020, 13h00

A morte pode ser um passo necessário para eternizar alguém como santo, mas “quase morrer” é o caminho mais seguro para se tornar herói. Os exemplos são numerosos e começam milhares de anos atrás. É só deixar o ceticismo de lado e aceitar textos religiosos como verdades estabelecidas. Querem ver?

Vejam o caso de Moisés. Conta-se que ele nasceu em lar judaico, teve sua vida ameaçada, foi colocado em um cesto e largado na correnteza do rio, foi levado pelas águas e salvo por uma serva da princesa do Egito, e acabou sendo criado como filho do faraó. Dizem também que, ao dar-se conta de sua origem, preferiu ser fiel a seu povo, abrindo mão dos privilégios que teria na terra das pirâmides. Liderou seu povo contra o próprio faraó, peregrinou pelo deserto por quarenta anos, recebeu as tábuas da lei, morreu ao avistar a Terra Prometida. É considerado o fundador do judaísmo, o maior dos judeus e um grande profeta, tanto para cristãos, quanto para muçulmanos.

Quem se der ao trabalho de consultar os mitos de origem mesopotâmicos (região que fica entre o Tigre e o Eufrates, mais ou menos no atual Iraque) vai encontrar várias histórias semelhantes, como a de Sargão, rei de Agade, cuja mãe “me colocou numa cesta de junco, com betume, ela selou milha tampa, ela me jogou no rio que não me cobriu, o rio me conduziu e me levou até Akki, o tirador de água…”, etc. A lenda de Rômulo e Remo também inclui o risco de vida para os gêmeos fundadores de Roma. Quando recém-nascidos, foram colocados no Tibre, como podemos ler em narrativa um tanto irônica de Tito Lívio. A infância cheia de riscos atinge até a figura de Jesus, que é carregado por sua mãe e por José em sua fuga, segundo nos é narrado nos catecismos. O fato de ter conseguido se salvar, milagrosamente, de morte provável, quase certa, pretende indicar a ligação que o herói tem com a divindade, a estreita relação que o mito tem com seu deus. A ideia de quem escreveu é mostrar que, desde criança, ele tinha sido escolhido, o que significa que já era diferente dos demais, especial, selecionado para viver e ser o responsável por grandes feitos.

O herói que correu risco de vida é um clássico. Além da literatura religiosa, ele frequenta as sagas de diferentes povos, dos escandinavos aos indígenas americanos. Pode ser encontrado até nos antigos seriados americanos. Quem não conhece super-heróis, super-homens que, antes de mostrar a que vieram, quase perderem a vida, prematuramente? São seres que superaram adversidades, não qualquer adversidade, mas ameaças graves, ódio de gente poderosa que, mesmo dispondo de enorme arsenal, não conseguem abater o herói, uma vez que ele é o protegido dos deuses (ou de um deus só, aí depende da religião). Mas nas narrativas, para ser mito, o futuro herói deve preencher outros quesitos. O principal deles, na definição do meu neto, é que ele precisa ser “do bem”. Mesmo sendo primário, grosseiro, vingativo, violento, até cruel, se é mocinho, é “do bem”. Em faroestes clássicos era aquele que montava cavalos claros, usava roupas claras. Nas antigas matinês do Cine Lider, em Sorocaba, qualquer criança (eu também, é claro) distinguia assim entre o escolhido dos deuses e os bandidos. Estes eram vaiados inapelavelmente desde sua primeira aparição, enquanto os heróis eram ovacionados. Eles escapavam de todos os perigos, porque eram os mitos, os mocinhos.

O herói sofreu um atentado? Ele é forte, vai se recuperar. Pegou a doença que apavora o mundo e já matou mais de um milhão de pessoas? Ele tem a benção dos deuses, vai dar dois espirros e dar o assunto por encerrado. Máscara é coisa de fracos… Dinheiro estranho tem aparecido em conta de familiares? “Ora, ora, quem foi o bandido que fez esse depósito, só para tentar envolver um homem tão reto”? A Amazônia e o Pantanal estão queimando? “Esses índios não deixarão nenhuma árvore em pé”.

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Sem entender de política internacional, nosso herói nos defende na ONU. Sem falar uma palavra de inglês, tornou-se o melhor amigo do presidente americano. O mundo mais uma vez se curvou diante do Brasil. O mito driblou a morte, está firme e forte no seu posto para nos defender de todos os perigos.

Como os ingênuos meninos do Cine Lider, tem gente que aplaude: “É o mito, o favorito dos deuses”.

O mesmo neto inteligente mais uma vez se manifesta: “só que não, vovô, só que não”.

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Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto

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