Cento e oitenta anos antes do Biden, Macron, Merkel estarem dando opinião sobre como devemos cuidar de nossas florestas, um parlamentar inglês aprovou lei dando direito à Marinha Britânica de intervir nos mares internacionais e nacionais e até nos portos de qualquer país, para proibir tráfico de escravos. Esta lei gerou uma forte indignação entre os traficantes, os fazendeiros e classes médias urbanas que dependiam da escravidão para fazer funcionar a economia e a sociedade.
A realidade social e econômica levou a população brasileira a se manifestar em defesa de nossa soberania, nosso direito a ter escravos, usar a escravidão a deixar nossos navios transportarem as mercadorias que nossa soberania aceitasse, inclusive mercadoria humana. Vista à distância, 180 anos depois, difícil entender a soberania de manter o que hoje parece infame a nossos olhos: o maldito tráfico de escravos.
Mas, aos mesmos olhos de hoje, parece uma quebra de nossa soberania a intervenção de dirigentes estrangeiros querendo nos impor a proteção de nossas florestas, nos ensinar como cuidar delas. Nos comportamos hoje como os escravocratas, defendendo nossos direitos soberanos para destruir o que é nosso; antes os nossos navios negreiros e nossos escravos, agora nossas florestas. Há uma diferença moral entre ter um escravo e derrubar uma floresta, mas destruir florestas é um genocídio contra os povos que nela vivem. Há uma diferença no conceito de soberania no século XIX e no século XXI. O mundo ficou um condomínio de nações interligadas. A pandemia mostra isto, a globalização e o poder da técnica e da ciência também. Não é possível deixar que a soberania plena de cada nação permita ameaçar o bem estar e o futuro da humanidade: instalar uma mina nuclear na fronteira com outros países, comércio de drogas não é mais uma questão apenas nacional, sigilo bancário para proteger corruptos em paraísos fiscais. Mais do que
tudo, o mundo requer regras internacionais para proteger o meio ambiente em cada país, sem o que provoca-se o desequilibrio ecológico em todo o planeta, afetando a sustentabilidade da civilização ou até mesmo a sobrevivência da espécie humana. A Terra é hoje um condomínio de países e cada um deles precisa levar em conta os interesses do conjunto deles, da humanidade.
Da mesma forma que na época da escravidão a moral humanista deveria se sobrepor à soberania nacional, cada país precisa aceitar regras que definam os limites de seus direitos soberanos. A diferença é que no lugar de um só país impor-se aos demais, agora as interferências devem ser definidas de forma global. No lugar de em nome da soberania nos opormos a intervenção estrangeira, devemos proteger nossas florestas e participarmos da definição de regras internacionais para todos países. Aceitar a preocupação do mundo com nossas florestas e exigir que os Estados Unidos e Europa reduzam o nível de consumo que depreda o meio ambiente tanto quanto o desflorestamento. Provocar as nações do mundo a irem além da preocupação com as florestas, definirem um novo rumo para a economia, domando o monstro da produção e do consumo, em busca de um desenvolvimento harmônico entre as pessoas e delas com a natureza, graças a uma soberania decente que respeite valores morais humanista.
Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador