
Quando Augusto Aras dá o aviso por decisão constitucionalmente suficiente e certa – ao pedir uma investigação dos grupos que protestavam em Brasília em frente do Forte Apache com faixas e palavras de ordem que violavam a ordem democrática – qualquer dúvida é afastada pelo ato técnico.
Não lhes deu boas vindas, nem pretendeu que se subordinassem ao estado democrático de direito. Quem quer mais que isso quer persuadir a alguém para recuperar a iniciativa, não se deixar sobrepujar pela racionalidade fria e completa do ato. Ou entregar provocações às maquinações da política partidária, ou não confiar no discernimento da sociedade sem cabresto.
Qualquer especulação política que busque consenso não vai conseguir prosperar e entender a mente da sociedade brasileira atual. Aras pressentiu as leis do estado de espírito e as ajustou à Constituição.
A partida vai ser decidida pela Carta. Ora Procurador, não é suficiente para tempos irracionais. Todos querem mais, o dono do baralho estava lá! Pois é o que se indaga. Quem estava na porta do banco na hora do assalto. Mas devagar com o fervor: a manipulação de provas é uma raiva sem lei na hierarquia dos suplícios, que vigorou contra Temer.
As coisas no Brasil estão tão descosturadas que muitos acham um mistério o que faz a alma de uma autoridade manter o curso de conduta em conformidade com o interesse geral. Seria aceitável se todos considerassem que são impermeáveis os ensinamentos da moral em qualquer situação. Mas para céticos das decisões políticas, qualquer pessoa vinculada ao poder só age, em média, por autointeresse.
A polêmica política, quando disputa com as autoridades a desilusão da sociedade diante do poder, se especializou em desconfiar de qualquer decisão produzida por senso de responsabilidade e abordagem discreta. Essa é uma das faces do desespero democrático. Tornou-se inaplicável à análise política o direito de opinião sem escândalo.
A tendência de deduzir caráter político espetacular de qualquer fato específico não é aconselhável para quem quer descobrir alguma novidade no baralho do poder. Fatos conjunturais não se ajustam a leis uniformes. São mais dispersivos do que agregadores. Especialmente quando a pluralidade de consequências das ações do presidente não pode ser considerada como originadas de um mesmo motivo. Se ele estivesse seguro de seu rumo, ele estaria na estrada certa, especialmente neste momento de comoção mundial.
Pensar que tudo é de caso muito pensado afeta as conclusões na política. Pois dedução não é saber, e análise política não combina com desejo ou deve ser fonte de desalento. Analisar não é fatalidade.
Mesmo anotando as razões dos que veem o presidente como zero não é possível acusá-lo de ser Nero e aproveitar a rima para associá-la ao ato do PGR. A natureza da observação deste episódio não se esquiva da soma das atitudes e das circunstâncias do mesmo tipo desde a campanha. Mas mesmo assim, para ser entendido, deve ser tomado em separado pois a análise mais geral do governo neste momento se concentra em outra direção. Porque desde algum tempo o curso de muitas ações originados dos Três Poderes é sempre determinantemente influenciado pelos sentimentos e os modos de agir que prevalecem na classe social particular a que pertence a autoridade.
Nós não temos mais um protocolo, uma etiqueta que sirva de padrão de comportamento de homens públicos.
É difícil hoje no país, lamentável, mas compreensivelmente pelo relaxamento geral a que nos permitimos chegar, mapear a República Federativa que somos a partir do chassi institucional mínimo que dá suporte à democracia como comunidade de interesse de longo prazo. Não temos um Estado da Nação conhecido e partilhado por todos. Porque as opiniões dos brasileiros foram concebidas conforme a experiência funesta, aflitiva, dos últimos 40 anos e daí é que cada um tirou sua regra de conduta política que é viver em constante processo de demolição. É duro decifrar de antemão o “como” e o “porquê” do sermão experimental que nos domina.
Quem tiver modéstia para não se atribuir uma certeza superior observe somente as variações da natureza comportamental dos governantes. E se abstenha de querer tirar boa fama da amizade ou inimizade em política. Não há nada desconhecido ou surpreendente. E mesmo diante da atual epidemia, para ter precisão e manter a exatidão das proposições e observações críticas, não há necessidade de deduzir elaborada doutrina política das atitudes presidenciais. Não há névoa. É o que é. E, felizmente, mesmo que haja tropa fanática não há guerra à vista.
O que há é que se o presidente não transmitisse tanto desprazer por governar; não se fizesse de tolo contra o parlamento e abandonasse a ilusão de liderar rebeliões de baixa patente, ele sairia imbatível dessa crise sanitária. O Brasil quer cuidado, zelo dos preocupados. Como prefere continuar mistificado, ele próprio está se desmistificando.
Paulo Delgado. É professor, sociólogo e consultor de empresas. Foi constituinte de 1988 e exerceu mandatos de deputado federal por Minas Gerais de 1986 a 2011. Articulista regular d’O Estado de São Paulo e assina a coluna de politica internacional dos Jornais Correio Braziliense e O Estado de Minas. É colaborador do Capital Político.