
Levar 39 kg de cocaína na bagagem para o Exterior dentro de um avião da frota presidencial deixa perplexo qualquer cidadão. O sargento da Aeronáutica, Manoel Silva Rodrigues, flagrado na Espanha, onde aguardava a volta da comitiva brasileira do Japão, pode desvendar o mistério: como usar “mulas” dentro das Forças Armadas para o tráfico?
Ora, o lamaçal no país penetra até nos santuários sagrados e invioláveis, como o Judiciário e as Forças Armadas. O filósofo italiano Norberto Bobbio, no clássico O Futuro da Democracia, já apontava a eliminação do poder invisível como uma promessa não cumprida pela democracia.
Esse poder consiste em ações criminosas de grupos nas entranhas da administração pública, formando um duplo sistema e até “peitando” a estrutura formal. Exemplo é esse do sargento. Imagine-se ali um terrorista capaz de um atentado mortal.
Há uma máfia nas sombras da administração, não mapeada pelos órgãos oficiais, a partir do Gabinete de Segurança Institucional.
Pensemos. Um dos princípios basilares da democracia é o debate aberto das ideias, a publicidade dos atos, a liberdade de expressão. Nas ditaduras, o Estado agasalha atos ilícitos e fere direitos dos cidadãos. As democracias modernas conservam mazelas do autoritarismo e confundem interesses gerais, individuais ou de grupos, preservando oligarquias e redes invisíveis de poder.
Mesmo nas democracias vicejam novas formas de ilegalidade, relações políticas aéticas, clientelismo, fisiologismo, etc. Por isso, as massas apáticas se afastam da política. A credibilidade nos governantes decresce, como se observa hoje, abalando valores éticos e morais. O resultado é o atraso no processo de modernização política e social.
As reformas almejadas – como a tributária – não ensejariam a eliminação das deformações do sistema, mas apenas lento avanço no aperfeiçoamento democrático.
Sejamos realistas: teremos de conviver por muito tempo com o poder invisível e suas consequências. Apurar se políticos, empresários e organizações têm dinheiro no Exterior, corrupção na Petrobras, empréstimos suspeitos no BNDES, investigar vazamentos de informações sigilosas para a Intercept Brasil ou verificar as ligações entre procuradores e juízes – são questões que não matam o vírus da corrupção.
Funcionarão como agulha lancetando um tumor, que pode reaparecer em outra parte do corpo se não for atacada na origem. Qual a causa? Há muitas, mas o nível cultural de um povo é, em última análise, determinante. Povos dóceis, ignorantes e indiferentes são os preferidos dos governantes, enquanto a democracia necessita de cidadãos conscientes e participativos.
A cidadania é fruto da educação. Não adianta reforma política se os súditos, na simbologia de Bobbio, mais parecem um bando de ovelhas pastando capim.
A promessa da democracia – educar os cidadãos – é compromisso prioritário para o Brasil sair do estágio pré-civilizatório da cidadania política.
Quando todos os brasileiros repartirem o mesmo prato da consciência cidadã, nossas doenças poderão ser curadas com simples vitaminas.
Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular a USP e consultor político