
A invasão do Capitólio, em Washington vai se constituir em marco na história política deste século. É o ponto da virada, aquele momento em que ocorre uma epifania. A democracia norte-americana há mais de dois séculos busca um sistema justo de convivência pacífica de antagônicos no mesmo espaço social.
O território das treze colônias, núcleo original dos Estados Unidos da América, se expandiu muito além do imaginado pelos pioneiros. E o fez com base na mão de obra dos negros trazidos da África, dos colonizadores originários da Europa Ocidental e dos poucos indígenas que sobreviveram ao massacre promovido pelos colonizadores.
Isso é história. O território norte-americano era dividido no início em três áreas distintas. As treze colônias eram vizinhas da Louisiana, cuja área atingia desde o Sul até a atual fronteira do Canadá. Napoleão vendeu sua antiga colônia na América para pagar as despesas originárias da guerra contra a Inglaterra no processo de independência dos Estados Unidos.
Os colonos brancos se depararam com o enorme território indígena. E foram para a guerra até alcançar o Oceano Pacífico. Em seguida, expulsaram os mexicanos dos territórios do Oeste. E compraram o Alasca dos russos. Vitória inquestionável dos brancos, protestantes e anglo-saxões. Eles criaram o país.
Mas o tempo se encarregou de mudar tudo. Os negros não retornaram à África. Permaneceram na América, sobreviveram aos ferozes ataques e humilhações dos brancos. Constituem hoje perto de 15% da polução. Depois vieram os latinos. Em tempos mais recentes chegaram os orientais. Ao lado disso, o colosso industrial começou a fazer água.
A economia norte-americana sofre pesada concorrência da China e de outros provedores. Empresas norte-americanas se estabeleceram em vários países, além de México e China, com objetivo de produzir para seu próprio mercado. Os empregos migraram para o exterior.
As consequências produziram os preconceitos que vicejam dentro do país. A classe média começou a perder empregos, resultado da globalização, do processo de integração digital e da reduzida capacidade de competir com produtos estrangeiros. O resultado foi o ressurgimento do nacionalismo político e das campanhas em defesa do produto nacional.
A partir daí foi fácil chegar ao slogan America First (América primeiro). Todos os preconceitos emergiram ao mesmo tempo. Os negros têm que ser mantidos em guetos, como aconteceu até praticamente os anos sessenta. Além disso, é preciso construir um muro para isolar os latinos. Apertar as regras para aceitar migrantes de países muçulmanos e asiáticos.
A crença de que o isolamento produz riqueza, purificação da raça e melhoria coletiva já foi experimentada diversas vezes no mundo. Inclusive na China. Não deu certo. É curioso ver hoje o dirigente chinês Xi Jinping defender o livre mercado. E o líder norte-americano defender que capitais norte-americanos retornem aos Estados Unidos e o país se retire de organismos multilaterais.
Trata-se de uma profunda mudança de valores. Comunistas defendem a liberdade comercial. Capitalistas pretendem o fechamento dos mercados.
Esse é o fenômeno que em linhas gerais fez surgir um líder como Donald Trump nos Estados Unidos. Ele fala a linguagem dos brancos que perderam empregos ou tiveram suas rendas reduzidas pela feroz concorrência de estrangeiros. Ao lado deles, os supremacistas, que sempre existiram no sul do país, não admitem a convivência com negros.
Este é um câncer antigo na sociedade norte-americana. O ódio aos latinos é disseminado na sociedade porque eles fazem as tarefas que o americano médio não quer mais fazer. Os asiáticos, não raro, são mais eficientes e capacitados do que os patrões. E ameaçam seus empregos
Essa é a fotografia do momento. Uma transição que está longe de ser pacífica. Policiais que matam negros sem hesitação, não impedem que uma turba de fanáticos brancos, alguns deles armados, entrem no prédio do Congresso dos Estados Unidos, ícone da democracia norte-americana. A maioria eventual produziu um novo tipo de Hitler, sem bigodinho, mas eficaz na crueldade contra estrangeiros e nacionais. Capaz de produzir uma tentativa de golpe institucional que por pouco não se concretizou.
Suas políticas não tiveram resultado produtivo em seu país. Produziram divisão, ódio e violência. Está em curso um processo de mudança política muito rápido, capaz de desconstruir antigos dogmas. Algum valor mais alto vai se alevantar. Essa é a epifania. O Império está doente.
André Gustavo Stumpf escreve no Capital Político. Formado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), onde lecionou Jornalismo por uma década. Foi repórter e chefe da sucursal de Brasília da Veja, nos anos setenta. Participou do grupo que criou a Isto É, da qual foi chefe da sucursal de Brasília. Trabalhou nos dois jornais de Brasília, foi diretor da TV Brasília e diretor de Jornalismo do Diário de Pernambuco, no Recife. Durante a Constituinte de 88, foi coordenador de política do Jornal do Brasil. Em 1984, em Washington, Estados Unidos, obteve o título de Master em Políticas Públicas (Master of International Public Policy) com especialização política na América Latina, da School of Advanced International Studies (SAIS). Atualmente escreve no Correio Braziliense. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀