
Somos assim porque somos todos complacentes —em relação a nós mesmos, aos demais e no tocante à configuração da sociedade, seu funcionamento e suas instituições. Sendo uma complacência mais negativa que positiva, entre os extremos já referidos, aceitamos práticas sociais que seriam inimagináveis, até absurdas, em outras sociedades.
Mansos e, no geral, pacíficos, tudo aceitamos em nosso inacreditável conformismo, remoendo, quase em silêncio, o rol de tragédias que nos atormenta. A vida social brasileira, em consequência, tornou-se frouxa, porosa e desfigurada, sem contornos de maior rigidez normativa, permitindo a aceitação envergonhada da impunidade generalizada, em todos os escaninhos da sociedade.
A população se conforma e fecha os olhos às atitudes não razoáveis, sob qualquer parâmetro de racionalidade mínima, não reagindo a praticamente nada. Não debatemos os fatos como são na realidade, mas sim como desejamos que fossem, uma vez que nem sequer problematizamos a dominante mentalidade mágica e os persistentes autoenganos que nos orientam, desconhecendo o que possa ser o pensamento crítico.
Rechaçamos a diversidade de opiniões e mantemos uma postura próxima a comportamentos sectários. Falamos em democracia sem conhecermos o roteiro político do “ideal democrático”. Fingimos todo o tempo, seja em relação à trágica desigualdade social sob a qual sempre vivemos, seja em face dos pequenos, mas reveladores, eventos do cotidiano.
Sempre falamos em direitos, mas a palavra dever não existe no dicionário dos brasileiros. E nem a palavra compaixão —e, por isso, não há nenhuma forma substantiva de solidariedade social entre os cidadãos.
Somos assim porque uma proporção dos brasileiros, ecoando os processos históricos, é cínica, profundamente cínica, incluindo os segmentos sociais burgueses, mas também —o que é crucial para manter estável e intacta a ordem social existente— quase toda a classe média.
E somos assim porque a vasta maioria (os cidadãos restantes, a classe média baixa e a multidão mais pobre) é infantilizada e incapaz de perceber seu papel descartável no jogo de poder e dominação estabelecido, não só em seus fundamentos econômicos mas também culturalmente, nos cinco séculos de história, aceitando de modo complacente a sujeição que lhe foi imposta.
Uma encenação permanente enrijece as chances políticas de transformação social. Por isso está distante a “boa sociedade” a que aspiramos, pois os brasileiros agem, sobretudo, contra si mesmos.
(Trecho de artigo publicado no caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo em 17/2/2019. Zander Navarro é sociólogo e pesquisador em ciências sociais.)