Dia sim, outro também, Jair Bolsonaro atenta contra o decoro em atos e palavras. Segue o padrão desde que assumiu: agride, ofende, provoca o conflito. Normalmente, porém, produz muita espuma e pouco chopp — ataca e recua, morde e assopra, porta-se no dia seguinte como se não existisse a ofensa da véspera. A mais recente crise que opõe o Planalto ao Congresso, porém, parece fugir ao modelo. Daí a inquietação que toma conta de parte de Brasília. Aponta-se um claro artificialismo no confronto que teve como origem o veto presidencial a itens do orçamento impositivo. Num piscar de olhos, o presidente resolveu romper um acordo aprovado por ele e tranquilamente fechado na semana anterior pelos líderes governistas. Flagrado num áudio fugaz, o ministro Augusto Heleno fez questão de continuar no embate e desandou a fazer declarações destemperadas sobre o Parlamento.
Não é coisa de quem tem juízo e deseja preservar a relação institucional com o Legislativo num momento em que há uma agenda econômica importante que o governo deseja — deseja? — aprovar. É coisa de quem está querendo esticar a corda e chamar o Congresso para a briga. Obviamente, o presidente da Câmara rebateu duramente, com uma resposta atravessada sobre o radicalismo do general, que teve seu salário aumentado pelos legisladores.
Parlamentares experientes se perguntam se só agora Bolsonaro e Heleno se deram conta de que o orçamento impositivo é (ora, vejam só…) impositivo! Impossível. Ao longo do ano passado, a retomada dos poderes do Legislativo em relação às emendas orçamentárias, que passaram a ter execução obrigatória, foi cantada em prosa e em verso pela mídia, pelos políticos, pelos técnicos e pelo próprio governo — que não pareceu se importar em ceder todos esses poderes a deputados e senadores. Jair Bolsonaro e seu entorno não mexeram uma palha para evitar isso, e nem a aprovação da LDO e da Lei orçamentária que consagraram as novas prerrogativas.
Ao contrário, o presidente da República recusou-se a construir uma base parlamentar nos moldes da “velha política”, ainda que a tenha praticado, em outros aspectos, segundo o mais antigo dos manuais. Deixou o Congresso carregar o piano da reforma da Previdência, ao mesmo tempo em que liberava suas milícias digitais para baterem em seus líderes, como Rodrigo Maia. Não por acaso, a aprovação do Legislativo voltou a cair a patamares mínimos, segundo as pesquisas.
Nesse contexto, como se fizesse parte de uma narrativa, Bolsonaro expurgou os políticos do Planalto com a saída do último dos moicanos, Onyx Lorenzoni. E cercou-se de generais — inclusive da ativa. Virou um esporte bater no Congresso, tarefa desempenhada por Heleno esta semana. Além de acusar os parlamentares de chantagem, o ministro chefe do GSI subiu o tom a ponto de desafiar o Legislativo a aprovar uma emenda parlamentarista se quiser governar. Mexeu com sistema de governo, instituições, democracia.
E com isso se chega ao clima de inquietação que vai dar o tom do Carnaval de Brasília. Acuado por outras razões, relacionadas sobretudo à relação cada vez mais evidente (que fez questão de mostrar) com o caso do miliciano Adriano, e quem sabe pelas dificuldades de fazer a economia deslanchar, Bolsonaro parece querer provocar um confronto institucional. Para chegar aonde?
Tudo indica que o Bloco do Golpe é ainda uma agremiação minguada, candidata a atravessar o samba e levar vaia das arquibancadas — que estão quietinhas assistindo mas estão acordadas. Bolsonaro, apesar das tentativas, ainda não conseguiu afinar a bateria militar no seu tom. Na cúpula das Forças Armadas, por ora, a maioria não parece disposta a voltar a vestir a fantasia de Brucutu. Mas o clima carnavalesco está estranho nos arredores do Planalto.
Helena Chagas é jornalista