O voto, maior arma de defesa da democracia, está deixando o coração para subir à cabeça. A hipótese pode parecer estrambótica nesses tempos de polarização, quando a emoção parece ganhar o jogo da razão. Mas engana-se quem imagina emoção como sinônimo de explosão, catarse, palavras de baixo calão (frequentes na linguagem dos governantes), slogans, culto aos mitos. Quando alguém, ante uma tragédia como a do Covid-19, diz – “nunca vi tanto desgoverno, estou arrependido do meu voto na última eleição” – está falando pelo coração ou pela cabeça?
À primeira vista, parece sair do coração. Ocorre que é um somatório de conhecimento da política, comparações, observação acurada do que se passa. Convenhamos que um processo racional se desenvolveu. A razão prevaleceu, coabitando com a emoção. Ultimamente, decepcionadas com os governantes, as pessoas dão as costas à política e revisam sua maneira de votar.
Na Europa, o sentido crítico acompanha os ciclos. Políticas sociais fracassadas, desvios da social-democracia, projetos liberalizantes inadequados e mesmo a corrupção alteram os comandos entre partidos. Os franceses chamam isso de “autogestão” técnica e definem o que esperam dos governos. Nos EUA, em que democratas e republicanos dominam a cena, é mais fácil selecionar seus representantes.
Aqui a paisagem é um deserto de ideias e líderes. Imensos buracos negros se multiplicam na política. Não há expressões de porte, quadros qualificados, pensadores e formuladores de alta densidade como antigamente. Claro que mudaram as condições da política. Os parlamentos perderam força, incluindo oposições, o discurso se torna grupal/ partidário/ fisiológico, sem a liturgia e o calor dos grandes embates.
O carisma, brilho que agiganta perfis, fenece sob a política de resultados. Causas nacionais cedem lugar a interesses de grupos, os comportamentos se igualam. O varejo se instala e a política deixa de ser missão para ser profissão. A ética fica a serviço das circunstâncias.
Coragem, zelo e obstinação, inerentes às lideranças, tornam-se escassos. Rigor na apuração de escândalos só ocorre sob pressão da opinião pública.
E o que faz o líder? Defende frentes de interesses. A liderança natural agoniza. O caso de Lula é emblemático. Seu carisma se esvazia. Tem o PT como seu trono e ali fica onipotente e onisciente. Diz que o partido não assina lista de Frente Ampla porque não é mais aquele do dito politicamente incorreto, “Maria vai com as outras”. Pouca razão e muita emoção.
A política desconhece a nova identidade do Brasil, crescendo sob o signo da razão, do planejamento, das oportunidades. Entre as lideranças, a mesmice se instalou com um discurso que não afeta, não entusiasma, não entra na alma. São nomes de 20, 30 anos atrás.
Nesse ano de pandemia, o superlativo dominará o calendário eleitoral, a verdade se cobrirá de fake news e o mundo real se dividirá com o virtual. Esperemos que a razão supere a emoção. E que não deixemos a polarização eleger radicais. Que o cabo de guerra seja substituído pelo tronco da paz.
Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político