A guerra do orçamento (por Leonardo Barreto)
O resultado deve ser o aumento da imprevisibilidade do processo legislativo

Como parte de uma narrativa da nova política, o presidente Jair Bolsonaro recusou-se a montar uma base parlamentar e colocou de lado – pelo menos formalmente – o velho jogo de barganha entre Executivo e Legislativo. Deixou-se de trocar apoio político pela liberação de emendas parlamentares no Orçamento.
Esse movimento foi acompanhado por discurso do ministro da Economia, Paulo Guedes, que, interessado em desvincular o Orçamento, afirmou repetidas vezes que parlamentares deveriam controlar todo o dinheiro. Seu objetivo era acabar com as chamadas despesas obrigatórias, “descarimbando” verbas para eventualmente permitir uma aplicação mais eficiente dos recursos.
O fato é que, em política, se controla apenas uma parte do processo. Uma vez iniciada uma ação, ela toma dinâmica própria e pode caminhar para direções não previstas no plano original.
Embora o governo tenha negociado emendas parlamentares em troca de apoio para um conjunto de projetos, o discurso oficial era outro e sustentou o aprofundamento de mudanças na formatação do Orçamento. Deputados e senadores não desvincularam o dinheiro e ainda aumentaram o volume de emendas que deverão ser de execução obrigatória em 2020. E mais, chamaram para si o direito de definir as prioridade dos pagamentos e estabeleceram um prazo de 90 dias para que sejam empenhadas.
O governo correu atrás e buscou minimizar o dano e conseguiu um acordo no qual receberia R$ 11 bilhões de volta do total de R$30 bilhões adicionais que os parlamentares definiram como execução obrigatória no formato de emendas. Além disso, abriu espaço para interferir na ordem de prioridades de pagamento e revogar o prazo máximo para empenho.
Tudo isso estava certo para ser votado no último dia 12. No entanto, na semana prevista, o governo resolveu voltar à “mesa de negociações”. Ministros mostraram descontentamento – as emendas avançam sobre o orçamento discricionário das pastas – e iniciou-se uma busca por um culpado de ter costurado o acordo. O ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, passou a ser pesadamente questionado.
Visto de cima, há uma franca transição do sistema de governo brasileiro. Está-se deixando um formato presidencialista centrado no Executivo – que sempre dispôs como quis do Orçamento aprovado pelo Congresso – para outro no qual parlamentares controlam onde e quando o dinheiro destinado às despesas obrigatórias será gasto.
De imediato, há perda de capacidade de gestão dos ministros, que percebem sua capacidade de criar programas e alocar recursos prejudicada. Nesse modelo, o titular de uma pasta será obrigado a ir ao Congresso garantir emendas e recursos para garantir seu funcionamento. Além disso, resta pouco para negociar quando uma medida de interesse do governo estiver na pauta. O Executivo perdeu poder de barganha e de governança.
O processo de fortalecimento do Legislativo na gestão do Orçamento é uma demanda antiga, mas que começou a tomar forma na segunda presidência Dilma Rousseff (PT). O modelo foi incrementado durante o governo Michel Temer (MDB) e ganhou força em Bolsonaro, que não tem nenhum partido na sua base. Deputados e senadores compensaram a insegurança gerada por não estarem formalmente ligados ao governo e a perda de ministérios com maior controle do Orçamento.
A discussão em torno do formato do Orçamento equivale, portanto, à participação que os parlamentares terão no governo, mas sem que nenhum laço formal entre os poderes esteja celebrado. Trata-se de um arranjo precário, que está no meio do caminho entre os sistemas de governo conhecidos e o que foi construído baseado em circunstâncias determinadas pela ruptura com o modelo do chamado presidencialismo de coalizão.
O resultado deve ser o aumento da imprevisibilidade do processo legislativo e do peso do parlamento em projetos de lei e dos movimentos de reação do Executivo. Tudo dentro de um contexto no qual o Legislativo, apesar da lei do teto de gastos, ainda é inimputável do ponto de vista fiscal. Isto é, se houver descumprimento da lei de responsabilidade fiscal, apenas o Executivo responde.
Embora o impasse atual exija uma solução rápida e, provavelmente, provisória, esse é um dever institucional que o país terá que enfrentar de novo até que um modelo seja de fato institucionalizado.
Leonardo Barreto é doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB); https://capitalpolitico.com/