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1964, o cadáver insepulto

É uma história contada pelo perdedor

Por Ruy Fabiano
Atualizado em 30 jul 2020, 19h51 - Publicado em 30 mar 2019, 10h00

Amanhã, a queda do governo João Goulart, ocorrida em 31 de março de 1964, faz 55 anos. Deveria ser um fato histórico devidamente ultrapassado, objeto de avaliação dos historiadores, sociólogos e cientistas políticos, com base em registros, documentos e depoimentos – tema, enfim, remetido ao tribunal da História.

Mas não é. É um cadáver insepulto, a assombrar gerações que nem sequer haviam nascido ou que estavam na primeira infância naqueles dias. Todos os seus protagonistas, civis e militares, estão mortos há muitos anos. Os sobreviventes, hoje mais que septuagenários, tiveram papel acessório nos acontecimentos.

O que explica então essa presença fantasmagórica, a assombrar os dias atuais? Simples: o 31 de março de 1964 (golpe, contragolpe, revolução, contrarrevolução, intervenção civil-militar ou apenas militar, seja lá o que tenha sido) transformou-se em uma espécie de mito fundador da esquerda contemporânea brasileira.

A partir dali, construiu-se uma narrativa de martírio que forja heróis de almanaque e busca dar-lhes protagonismo nos dias atuais.

Essa narrativa exclui os atos de um dos lados, o vencido, e projeta no vencedor todas as atrocidades de um embate que envolveu guerrilhas, sequestros, assaltos a banco e atos de terror. A cartilha de Marighela, não por acaso, destacava a palavra “terror”.

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Alguns desses então proclamados terroristas, anistiados em 1979, viriam a ocupar postos de comando na república – Dilma, na Presidência, e outros no Congresso, ministérios e governos estaduais.

Mas a página não foi virada. A Comissão da Verdade listou, em 21 anos, 434 mortos no embate; a esquerda matou cerca de 120. No total e no prazo de vigência do regime, cerca de 20 mortos por ano.

O país, nesse período, teve uma média de 120 milhões de habitantes. Cuba, com oito milhões, relaciona 120 mil fuzilados, além de exilados e presos políticos aos milhares, ainda hoje excluídos. A Venezuela bolivariana já matou mais que o dobro no Brasil de então.

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É uma história contada pelo perdedor, invertendo a lógica de que é o vencedor que impõe sua narrativa. Quem se der ao trabalho de ler os jornais e revistas da época há de constatar (pois se trata de matéria de fato, não de opinião) uma quase unanimidade da opinião pública em relação aos acontecimentos.

A mesma mídia, que hoje deplora o ocorrido, celebrou (à exceção da falecida Última Hora) o seu advento. O principal jornal de então, o Correio da Manhã, o postulou em dois editoriais (“Basta” e “Fora”); O Globo, em editorial de primeira página, estampava: “Ressurge a Democracia”. Hoje, diz o contrário. O que mudou?

O regime militar, que Lula saudou (há vídeos na internet) como responsável pela fase econômica mais próspera do país, abriu mão da narrativa. Entregou a cultura aos adversários – e não por descuido, mas por convicção: o general Golbery sustentava a teoria da “panela de pressão”, segundo a qual a esquerda precisava de uma válvula de escape – e esta era a cultura, que julgava inofensiva.

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Subestimou o poder da narrativa, ainda hoje em pleno curso. A história, nesses termos, não é o que ocorre, mas o que dali se conta.

O governo Bolsonaro, ao decidir pela celebração da data, tenta reverter o fenômeno, o que só parece viável a longuíssimo prazo, quando todos estaremos mortos.

Num primeiro momento, embora a expectativa seja oposta, dá combustível a seus adversários para que reforcem seu martiriológio e mantenham vivo o seu mito fundador.

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O país, no fim das contas, mantém sua vocação de centro espírita político, que mantém o passado em permanente mutação.

Ruy Fabiano é jornalista  

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