Javalis, no sul da Alemanha, apresentam surpreendentes níveis de radioatividade. As causas primárias seriam os testes nucleares ocorridos nos anos 50 e 60 e, ainda, a tragédia nuclear de Chernobyl, nos anos 80. Outros animais, porém, não apresentam níveis tão elevados de contaminação — fato conhecido como “paradoxo do javali”. Suspeita-se que os javalis comam certos tipos de trufas alcançadas tardiamente pela radioatividade, já que a contaminação das camadas mais profundas do solo, onde essas trufas se encontram, permanece por mais tempo.
Vivemos uma espécie de paradoxo do javali no Brasil. A corrupção, o patrimonialismo e o corporativismo envenenaram tanto a superfície quanto as entranhas do sistema político, comprometendo a lisura do processo decisório e a qualidade das políticas públicas. O combate sistêmico não funciona, pelo fato de que esses três elementos se alimentam na mesma fonte contaminada, favorecendo a perenidade do fenômeno.
Infelizmente, a descontaminação do sistema político não é para o nosso tempo. Prosseguiremos em lutas inglórias por décadas à frente, uma vez que nada no cenário aponta para uma reversão radical de expectativas no curto prazo. Além do mais, não há interesse em enfrentar as causas que menciono a seguir, basicamente três — na verdade, poderiam ser duas dúzias, mas, para poupar o tempo do leitor, fico apenas nas três principais.
“A corrupção, o patrimonialismo e o corporativismo envenenaram a superfície e as entranhas do sistema político”
O Brasil continua sendo o país do manda quem pode e obedece quem tem juízo. Com um detalhe: quem manda não responde, necessariamente, nem plenamente, pelos próprios atos. Falta-nos accountability. O segundo aspecto é que o Estado no Brasil é maior e mais poderoso que a sociedade, o que torna o jogo político desigual, como se a sociedade jogasse contra o Estado no estádio do adversário com a torcida contra e a arbitragem favorecendo os donos da casa. Historicamente, perdemos sempre de goleada como no caso das decisões do Carf contra o contribuinte.
O terceiro aspecto reside no fato de que nossa capacidade de reflexão é precária, contribuindo para uma ampla manipulação das narrativas. Por exemplo: quando a Operação Lava-Jato interessava, não havia nem crítica ou reflexão aos seus excessos. Assim como não há hoje uma preocupação em separar o joio do trigo no que restou de correto da referida operação. Nossa academia, que deveria ser fonte de reflexão e reflexividade, está, em sua maioria, capturada por um pseudo “progressismo” que acredita que os problemas sociais serão resolvidos pelo dirigismo estatal.
O mapa da desigualdade mostra que onde a política é mais relevante que a economia a situação é pior em termos de emprego, renda, educação e arrecadação tributária. Onde a economia é mais forte, temos mais desenvolvimento e menos desigualdade. Os avanços institucionais obtidos até agora nos impedem de nos transformarmos numa Venezuela, mas são insuficientes para nos elevar ao patamar de uma espécie de Coreia do Sul tropical. Enfim, o paradoxo do javali pode ser aplicado ao Brasil na forma de uma contaminação lenta e profunda que demandará décadas para ser superada — e, reforço, não será para o nosso tempo.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858