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Montaigne e as ‘fake news’

No Brasil tanto esquerda quanto direita tentam impor verdades

Por Murillo de Aragão Atualizado em 4 jun 2024, 10h43 - Publicado em 4 jun 2023, 08h00

Apesar dos anos de debate, o mundo das plataformas digitais continua uma terra sem lei. Ou, ao menos, inadequadamente regulamentado. Antes mesmo de termos regulado as redes sociais, surgem novas tecnologias que assombram a humanidade e trazem novos desafios, caso dos sites de inteligência artificial (IA). Continuamos com os problemas do passado — educação precária, analfabetismo funcional, racismo e desigualdade —, acrescidos dos problemas do presente (fake news), e estamos prestes a ter de enfrentar o tsunami da IA. O que fazer?

É paradoxal indicar a atualidade de Michel de Montaigne em um momento de redes sociais, IA e fake news, entre outras transformações. Mas fato é que, mais de 400 anos depois de sua morte, Montaigne continua cada vez mais atual. Evidentemente, com o passar dos séculos, muitos aspectos parecem deslocados, mas, em essência, os ensinamentos contidos no seu famoso Ensaios continuam aplicáveis. Um dos aspectos mais relevantes desses ensinamentos reside no fato de a verdade ser relativa, dependente da perspectiva dos indivíduos. E no fato de a verdade de cada um ser construída a partir das circunstâncias e das experiências vividas e da educação e da cultura recebidas.

“Hoje, no mundo político, poucos questionam a si mesmos — e não admitem culpas”

No Brasil de hoje, vemos forças políticas — de direita e de esquerda — tentando impor verdades que já não se sustentam, uma vez que a verdade é relativa e não existe fórmula pronta e acabada para o sucesso. Montaigne valorizava a introspecção e a reflexividade muito antes que essa última fosse considerada um conceito relevante. Ele acreditava que devíamos questionar nossas crenças e examinar nossas emoções e motivações para podermos entender melhor a nós mesmos.

Hoje, no mundo político, poucos questionam a si mesmos. Empilham razões que justificam sucessos e fracassos, mas não admitem culpas. Ao propor a tolerância e o respeito à diversidade de opiniões, Montaigne criticava o dogmatismo e o exercício rígido das crenças. Tempos depois, Oscar Wilde apontou na mesma direção, dizendo: “A consistência é o último refúgio dos sem imaginação”. Como um cético, Wilde questionava a tudo e a todos, em especial o senso comum. Ao mesmo tempo, considerava “a possibilidade de sonhar coisas impossíveis e de caminhar livremente em direção aos sonhos”.

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Em um Brasil de polarização radicalizada, com intolerância, dogmatismo, declínio do pensamento crítico e profusão de disparates e idiotices vocalizados pelas redes sociais, os ensinamentos de Montaigne deveriam ser observados como promoção de tolerância, estímulo à reflexão e possibilidade de superação de dogmatismos. Ou seja, tudo aquilo que as plataformas digitais demonstraram, até agora, não propor de fato.

A leitura de Montaigne é recomendável para quem consome informações das redes sociais e das plataformas digitais. Assim como, de modo amplo, para quem busca uma educação mais reflexiva e menos dogmática. Aberta aos desafios que a tecnologia impõe. Mas o disciplinamento que impute a devida responsabilidade a quem propaga fake news deve ser estabelecido urgentemente.

Publicado em VEJA de 7 de junho de 2023, edição nº 2844

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