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Entre o delírio e a necessidade

Há perigo na confluência da ideologia com as expectativas populares

Por Murillo de Aragão 10 nov 2024, 08h00

As eleições municipais deste ano, assim como a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, revelam uma realidade marcada por dois elementos centrais que parecem governar as ações e reações políticas: o delírio e a necessidade.

Observamos políticos que, muitas vezes, permanecem imersos em suas próprias ficções, presos a ideologias e utopias que, por mais atraentes que possam parecer, ignoram os problemas concretos do cotidiano. Há ainda aqueles que moldam seus delírios em resposta às necessidades populares, buscando uma convergência entre suas ideias e a realidade.

A população, por sua vez, encontra-se pressionada entre as urgências da sobrevivência e as demandas pragmáticas por melhores condições de vida. Limitada pelas necessidades imediatas, ela busca soluções que aliviem seu cotidiano, inclinando-se para respostas práticas, mesmo quando estas se encontram revestidas de discursos ilusórios.

Essa dualidade — entre políticos enredados em ficções ideológicas e o povo encurralado pelas necessidades — revela uma tensão fundamental na política contemporânea. O perigo reside justamente nessa confluência entre o delírio ideológico e as expectativas populares. O encontro desses elementos pode desencadear ciclos de insensatez, frustração e instabilidade, com consequências potencialmente destrutivas para a sociedade.

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A história mostra o risco desse fenômeno: a Alemanha nazista, a Itália de Mussolini e a ascensão do comunismo soviético ilustram o perigo que surge quando a demagogia ideológica se associa ao imediatismo das necessidades populares. Essa aliança entre delírio ideológico e expectativas populares gera frustrações e abre portas para regimes autocráticos, comprometendo os avanços civilizatórios.

“O futuro da política prossegue incerto, e a democracia, como conceito, sob severa ameaça”

Nos Estados Unidos, Donald Trump venceu a eleição ao prometer resolver questões relacionadas ao custo de vida e à imigração ilegal, apresentando uma narrativa quase messiânica. O eleitorado, desiludido com o que considerou uma falta de energia na liderança democrata, especialmente na figura de Kamala Harris, optou pelo retorno de Trump. Em seu discurso, ele sugere, nas entrelinhas, um governo centrado nos problemas domésticos, propondo, em uma promessa de “era de ouro”, um afastamento das questões globais. Já o discurso politicamente correto dos democratas americanos não emociona uma sociedade endurecida pelos seus desafios do dia a dia.

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O futuro da política, situado entre o delírio e a realidade, prossegue incerto, e a democracia, como conceito, sob severa ameaça. As crises, já turbinadas pelas redes sociais, fake news e interpretações tendenciosas, poderão ganhar proporções apocalípticas pelo uso da inteligência artificial. Esse cenário se desenrola em um ambiente de “burrice estrutural”. A política, potencializada pela tecnologia, tornará o eleitorado cada vez mais exigente na busca por respostas que nem sempre estarão em consonância com a razoabilidade, o discernimento ou a capacidade prática dos governos em atendê-las.

O século passado foi marcado por figuras psicopatas e neuróticas que alimentaram conflitos e massacres em quase todos os continentes. Este século traz ameaças semelhantes, agora encarnadas por novos personagens igualmente histriônicos, perigosamente patéticos e delirantemente não pragmáticos.

Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2024, edição nº 2918

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