Muitos ficam irritados com o uso intenso da expressão “narrativa” nos dias de hoje. A irritação se dá tanto pela exaustão causada pela repetição quanto pelo rebaixamento de evidências e provas frente ao discurso. De fato, esse expediente está se impondo sobre a realidade. Daí o sucesso do copyright como atividade de contar histórias com o fim específico de convencer alguém. Nada mais antigo. Contudo, nada mais atual.
Quem não tem narrativa está fora do contexto das circunstâncias. A supremacia se dá em detrimento da expertise. Daí o sucesso de celebridades que opinam sobre tudo, mesmo pouco sabendo do que estão falando. Pois não importa o que falam, desde que a narrativa seja boa e, de preferência, politicamente correta.
A supremacia da narrativa também é um conforto para quem não quer pensar e deseja chegar a conclusões que lhe são confortáveis. A consequência é um empobrecimento generalizado das decisões, que acabam sendo mais influenciadas pelas narrativas do que por seus méritos.
As narrativas se relacionam também com três outros fenômenos da comunicação: o agendamento, o enquadramento e a “lacração”. A tríade é companhia inseparável da interpretação contemporânea dos acontecimentos.
Todos os grandes acontecimentos do século XX, para não ir muito longe, tiveram nas narrativas o veículo das transformações. Sem versões que mobilizassem radicais e paralisassem os moderados, não haveria a revolução soviética nem tampouco a emergência do nazifascismo.
“O que está sendo proposto é um mundo onde quem fala bem prevalece sobre quem fala a verdade”
A Rússia de hoje tentou criar uma justificativa antinazista para invadir a Ucrânia e agora está atolada em uma guerra que já perdeu, mesmo que ganhe militarmente. Perder a guerra da narrativa foi a primeira e decisiva derrota russa.
No Brasil, o ex-presidente Jair Bolsonaro perdeu a eleição antes mesmo da abertura das urnas por causa de uma sequência de narrativas erradas que, no fim das contas, reabilitaram eleitoralmente Lula e determinaram o resultado do pleito.
A importância da narrativa também está na aprovação da reforma tributária. Afinal, comprou-se uma história cujo preço para o contribuinte não está claro. Apenas alguns dias depois da simbólica votação, a opinião publicada acordou para alguns aspectos e cunhou, com imensa criatividade, o termo “emenda Cavalo de Troia” para a matéria. A maioria não sabe, de fato, o que foi aprovado.
A vitória da narrativa propõe um mundo onde quem fala bem prevalece sobre quem fala a verdade. É uma espécie de Truman Show, onde todos nós podemos ser os “Trumans”, e quem controla as narrativas controla o jogo.
A predominância das narrativas pode significar a derrota da racionalidade e um atraso gigantesco no caminho do sucesso econômico e social de um país profundamente desigual.
Para onde vamos? Difícil dizer, já que a maioria da nossa população aprendeu a representar antes de saber ler e, funcionalmente, não entende o que está lendo. A situação sugere que as narrativas vão prevalecer sobre a verdade dos fatos. Até que os tributos dos erros se tornem insuportáveis ou as lideranças políticas, jurídicas, econômicas e sociais fiquem mais responsáveis.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2023, edição nº 2850