‘Você não tem vergonha?’, perguntou refém idosa ao chefe do Hamas
Como os reféns israelenses foram tratados? Aos poucos, emergem histórias como a de Yosheved Lifshitz que vão formando um quadro

São poucas as forças no mundo que se equiparam à de uma avó judia. Depois de irritar o governo israelense por cumprimentar um brucutu do Hamas e desejar “Shalom”, como boa militante pacifista, ao ser libertada, antes da atual troca de reféns por prisioneiros palestinos condenados por terrorismo, Yosheved Lifshitz, de 85 anos, fez uma revelação impressionante: Yahya Sinwar, o chefe político do Hamas, esteve com o grupo de capturados do qual ela fazia parte.
“Sinwar esteve conosco por três ou quatro dias”, contou ela. “Eu perguntei como ele não tinha vergonha de fazer uma coisa assim com pessoas que durante anos apoiaram a paz. Ele não respondeu. Ficou calado”.
A pergunta revela uma ingenuidade, a de achar que o Hamas faz alguma distinção entre israelenses que militam no pacifismo, como tantos dos kibbutz atacados no 7 de outubro, e os de linha dura. Para o Hamas, obviamente, todos são judeus – e foram mutilados, incinerados, fuzilados e outras barbaridades do mesmo jeito.
Yosheved durante anos ajudou pessoas doentes de Gaza a buscar tratamento médico em Israel. Quando foi solta, em 24 de outubro, com outra refém idosa, ela provocou uma crise interna no governo ao dizer , numa coletiva descontrolada, que tinha sido tratada com “atenção” e “gentileza” – bem diferente das pauladas que levou na moto em que foi levada ao cativeiro. A entrevista foi considerada um desastre de relações públicas para o governo.
A MENINA QUE SUSSURRA
Mas as indômitas velhinhas continuam falando. Ruti Munder, de 78 anos, solta na segunda-feira, disse, que no começo, a comida era boa -“arroz com frango, enlatados, queijo”. Depois, quando a situação de Gaza deteriorou-se, piorou. Ela soube que o filho tinha sido morto no ataque do Hamas ouvindo a rádio de Israel. O local do cativeiro mudava para evitar que os israelenses localizassem reféns. Ruti dormiu em bancos de plástico do tipo de sala de espera, coberta com um lençol, com os “meninos dormindo embaixo porque queríamos que ficassem perto de nós”.
Nem esse consolo teve Eitan Yahalomi, de apenas doze anos. Segundo uma tia, Debora Cohen, ele passou dezesseis dias isolado no início do cativeiro e apanhou de pessoas na rua ao chegar lá. Foi obrigado a ver um filme com atrocidades do massacre que “ninguém suportaria assistir”.
“Toda vez que uma criança chorava, eles ameaçavam com armas para calá-la”, disse a tia.
A intimidação sobre as crianças ganhou um exemplo tocante dado pelo pai da pequena Emily, de nove anos. Thomas Hand contou que não conseguia ouvir a filha quando ela foi solta, porque ela “tinha sido condicionada a sussurrar”. Os raptores exigiam silêncio. Quando perguntou quanto tempo achava que tinha ficado no cativeiro do Hamas, a menina respondeu: “Um ano”.
Também há a suspeita de que Danielle Aloni, a mãe de outra menina, a quase xará Emilia, de cinco anos, foi obrigada escrever uma carta agradecendo aos captores pela “humanidade extraordinária” e o tratamento que a fez sentir “como uma rainha”.
CRISE NACIONAL
Irá a troca de reféns por prisioneiros continuar depois da prorrogação da atual trégua? Esse é um dilema para o governo: a cada dia que recebe um grupo de libertados, o Hamas ganha mais prazo para se reorganizar. As imagens que filma dos reféns sendo entregues à Cruz Vermelha mostram a organização terrorista no controle, com homens – e mulheres – bem armados e equipados e uma imagem até benevolente. “Continue acenando” disse um deles a uma refém, interessado em manter a farsa do bom tratamento.
Como o governo israelense pode interromper a troca e retomar os ataques a Gaza, em cumprimento da promessa de neutralizar o Hamas, sem provocar uma crise nacional? É uma decisão quase impossível. As famílias das pessoas que continuam sequestradas obviamente querem que as trocas continuem e contam com uma forte solidariedade da opinião pública.
A trégua foi prorrogada pelo dia de hoje e acaba amanhã – mas isso, evidentemente, muda ao sabor das circunstâncias.
ESPÍRITO COLETIVO
Só a linha duríssima foi contra a troca. O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, deu os três votos que tem no gabinete, num total de 38 ministros, contra o processo e alertou que tudo terminaria em “desastre”. Agora, ameaça pedir demissão – e derrubar o governo -, se a guerra não for retomada.
Ele lembrou como exemplo de erro gravíssio o caso de Gilad Shalit, soldado sequestrado trocado em 2006 por 1 027 prisioneiros palestinos, inclusive o próprio Yahya Sinwar, que comandou as negociações da cadeia onde passou 22 anos.
Sinwar aprendeu hebraico e o funcionamento da política e da sociedade de Israel. Sabe que existe um forte espírito coletivo, conectado ao desamparo extremo que cercou as vítimas do Holocausto, de não deixar nenhum preso abandonado, imagine-se criancinhas e idosas.
Está aplicando esses conhecimentos, em combinação com o Catar, para manipular Israel. Toda a cúpula israelense sabe disso muito bem. Só não tem respostas fáceis. Tudo é absurdamente difícil nessa crise.
Um exemplo chocante: a afirmação do Hamas de que os irmãos Kfir e Ariel e sua mãe, Shiri Bibas, foram mortos num bombardeio israelense. A argentina Shiri desesperada com o sequestro, abraçada aos filhos, de cabelo muito ruivo, foi uma das imagens chocantes do 7 de outubro. O Hamas dizia até agora que eles estavam com outro grupo armado.
Kfir completou dez meses durante o cativeiro. Ainda vive? Foi mesmo morto? São perguntas dolorosas, de rasgar o coração – e fazer lembrar, para os esquecidos, que foi o Hamas que começou tudo isso.