‘Todos querem ser meus amigos’, diz Trump, no meio de briga interna
Empresas importantes fazem fila em Mar-a-Lago, ao contrário do que aconteceu na primeira eleição, mas otimismo sofre rachaduras

“Bill Gates pediu para vir, hoje à noite”, postou Donald Trump para o superamigo Elon Musk. “Quando é que você vem para o ‘Centro do Universo’, Mar-a-Lago?”. Ao contrário do que aconteceu quando foi eleito pela primeira vez e sofreu fortes resistências, o futuro presidente está curtindo uma fila com grandes nomes da indústria, finanças e alta tecnologia que pedem audiências. “Todos querem ser meus amigos”, comemorou.
Até Bill Gates, que doou cinquenta milhões de dólares para a campanha de Kamala Harris.
O dinheiro agora está indo todo para bancar a parte das cerimônias de posse que não são pagas com fundos públicos. Não só Bill Gates, como Mark Zuckerberg, que teve um papel importante na eleição de Joe Biden, dando como falsas informações verdadeiras (fez um raro mea culpa por isso), e Jeff Bezos, dono do altamente antitrumpista Washington Post, já foram para o beija-mão no palacete de Trump na Flórida. Modestamente, colaboraram com apenas um milhãozinho para as festas de 20 de janeiro.
Outros nomões listados pelo Wall Street Journal: Goldman Sachs, Bank of America, General Motors, Toyota, Uber, OpenAI, Ford – esta também fornecendo uma frota de carros. Sem contar o mais importante grupo de lobby da indústria farmacêutica, exatamente o mesmo que Robert Kennedy Jr., na posição equivalente à de ministro da Saúde, quer desarticular. Imaginem o que os lobistas sentem quando ele promete acabar com a “porta giratória”, o trânsito praticamente livre entre agências reguladoras e grandes laboratórios. Já dá para antecipar um choque de titãs.
EXALTAÇÃO DA MEDIOCRIDADE
Em outra área, isso já está acontecendo, entre representantes das Big Techs, como o próprio Musk e seu parceiro no futuro órgão de desregulamentação e corte de gastos, Vivek Ramaswamy, e uma ala mais linha dura do trumpismo.
Motivo: os vistos de trabalho da categoria H-1B, dados a profissionais estrangeiros gabaritados. São estes programadores e similares que formam a base do mundo tech. Mais de 70% vêm da Índia. Para dar uma ideia: a indústria de semicondutores, beneficiada por incentivos de bilhões de dólares como uma área estratégica que não pode ser deixada nas mãos de Taiwan, sob risco de interferência da China, precisa de nada menos do que 160 mil programadores.
Por que não há americanos para tantas vagas bem pagas? Vivek Ramaswamy, que é de família indiana, deu uma explicação altamente polêmica, dizendo que “a cultura americana vem venerando a mediocridade em lugar da excelência” há muito tempo. Ele criticou “uma cultura que celebra a rainha da formatura em lugar do campeão da olimpíada de matemática, o atleta em vez da primeira da classe”.
Criticar cultura é uma encrenca danada em qualquer país do mundo. Uma parte do universo trumpista entrou em surto, defendendo o princípio da América em Primeiro Lugar, mesmo quando não há candidatos suficientes para as vagas (um dos argumentos: os estrangeiros são usados para manter os salários mais baixos, na faixa de 170 mil dólares por ano e “até menos”).
Elon Musk entrou na briga com a habitual falta de sutileza, chamando os adversários dos vistos para estrangeiros de “idiotas desprezíveis”, além de “racistas impenitentes”. A ala inspirada por Steve Bannon surtou, mas Trump bateu o martelo: disse que apoia Musk e companhia nessa questão. E tem muita gente com esse tipo de visto trabalhando em suas propriedades. “Sempre fui a favor dos vistos”, disparou. Mesmo assim, o debate continuou pegando fogo.
Os Estados Unidos dão 65 mil vistos H-1B por ano a estrangeiros, além de 20 mil a candidatos com mestrado em instituições americanas. Como os solicitantes excedem o teto, a escolha é feita por uma espécie de loteria. Suspender ou eliminar os vistos seria extremamente autodestrutivo.
RELAÇÕES TRANSACIONAIS
A briga interna, com contornos de racha, empana as expectativas positivas em relação ao novo governo. Segundo uma pesquisa da Fox, 55% dos americanos estão muito ou extremamente otimistas em relação ao futuro do país (a simpatia partidária tem um papel fundamental nesse sentimento: as respostas afirmativas englobaram 86% dos republicanos e apenas 27% dos democratas; no meio, os independentes, com 46%).
Sobre a forma como Trump está conduzindo a transição, 51% aprovam e 44% desaprovam, segundo uma pesquisa Gallup. É um dado positivo que mostra, se não uma lua de mel, um ambiente mais favorável. O próprio Trump está mais experiente, sem pretensões descompensadas como na primeira posse, quando imaginava festas com artistas como Andrea Bocelli, Elton John e Céline Dion. Todos disseram não..
Mesmo que a rejeição continue no mundo artístico, a aproximação com grandes empresas – todas, obviamente, antenadas para defender seus próprios interesses – está entusiasmando Trump. Embora ninguém melhor do que ele, tão especialista em relações transacionais que criou o maior programa do gênero, O Aprendiz, entenda a motivação dos novos “amigos”.
Sobre os amigos antigos, que estão furiosos com Musk e companhia na questão dos vistos para profissionais qualificados, é praticamente um mandamento da política que as brigas internas são as mais furiosas. Trump terá que fazer algo que não está acostumado: botar panos quentes. As críticas virulentas que vem sofrendo de sua própria base mostram que os bilionários do Vale do Silício ganharam a primeira partida, mas o jogo vai continuar.