Ter sido um gigante cheio de erros fez Muhammad Ali tornar-se melhor
Cair e levantar depois da queda, no sentido de admitir enganos, foram atos que tornaram o lutador mais notável

Muhammad Ali falou coisas idiotas, malucas e mentirosas durante o caminho que o levou ao auge da fama. Depois, teve grandes atos de bravura moral, reservados aos que realmente querem ver com os próprios olhos: reconsiderou seus conceitos, reconheceu que estava errado e tomou um rumo mais generoso, iluminado por um sentimento de generosidade em relação a todos nós, humanos, tão falíveis e propensos ao autoengano.
Infelizmente, em muitos necrológios sobre ele, desequilibrados pelo desconhecimento ou pela má fé, pouco aparece sobre esse processo extraordinário.
O boxeador fez a alegria da esquerda festiva numa época em que ainda dava orgulho ser parte dela e em que as metáforas sobre borboletas e abelhas não haviam se tornado insuportáveis. Recusou-se a ir para a guerra do Vietnã, converteu-se ao islamismo e virou uma voz trovejante do black power – e, em se tratando de poder da negritude, nada podia ser comparável a ele.
Por causa disso, as bobagens que falava eram relevadas, numa manifestação inconsciente de racismo, como se, pelo fato de ser negro e lutador de boxe, não se esperasse coisa melhor. Esse papel de bufão ainda é dolorosamente reproduzido por muitos americanos negros que abrem caminho para o sucesso como comediantes.
Devido à época e ao peso terrível e territorial do racismo nos Estados Unidos, onde apenas 13% da população é negra, é possível entender que o jovem lutador renunciasse ao nome imponentemente romano, Cassius Marcellus Clay – o mesmo do pai, dado em homenagem a um bizarro anti-escravagista -, e encontrasse um certo espírito de dignidade na Nação do Islã, o movimento ao qual aderiu.
Todo o resto é espantosamente desconexo. A Nação do Islã é uma seita criada por Elijah Robert Poole, que depois passou a ser chamado de Elijah Muhammad, que só remotamente tem algo a ver com a religião muçulmana. Aliás, do ponto de vista desta, é uma heresia destrambelhada, embora cultivada por interesses políticos por humanistas da ordem de Muamar Kadafi, o ditador carniceiro da Líbia.
Elijah inventou uma narrativa do outro planeta, literalmente. Os brancos são uma raça demoníaca que conseguiu dominar os negros, os quais serão salvos por uma nave espacial da qual sairão aviões que destruirão quase a Terra todinha. Com exceção, claro, da raça escolhida.
Malcolm X também seguia a Nação do Islã e foi assassinado por integrantes da seita, numa disputa de poder.
Vamos lembrar que o ex-Cassius Clay aderiu à Nação do Islã em 1964, quando as mudanças da chamada contra-cultura chacoalhavam a juventude e alimentavam todo o tipo de extravagância alternativa. Apenas três anos depois, aconteceu a legendária manifestação contra a guerra do Vietnã em que os participantes mais entusiasmados tentaram fazer levitar o Pentágono através da força do pensamento. No sentido literal.
Para evitar a guerra, o renascido Muhammad Ali poderia ter simplesmente ter alegado objeção de consciência. Preferiu inventar que era integrante do clero islâmico. Os três anos que passou proibido de lutar boxe são vistos, com razão, como um castigo absurdo, mas era assim que o país funcionava antes da profissionalização das Forças Armadas.
Muhammad Ali aderiu à tese da segregação racial pregada pela seita. Durante anos, falou os maiores absurdos sobre as vantagens da segregação, repetindo quase que ponto por ponto as bases da doutrina chamada de “separados mas iguais”, implantada no fim do século XIX, pela qual a separação física entre lugares frequentados por brancos e negros foi permitida no sul dos Estados Unidos.
O lutador fenomenal ofendia seus adversários negros com o rótulo de “pretos à moda do Tio Tomás”, ou seja, submissos. Chegou a defender a morte de mulheres negras que se envolvessem com brancos. Por causa da aura mítica, da simpatia e do jeito engraçado, dava entrevistas sem parar sobre esses temas, que causariam horror se viessem de qualquer outro.
Uma das entrevistas mais famosas, a um apresentador da BBC, foi parodiada por Billy Crystal em 1977. Imitando a pronúncia cantada do sul dos Estados Unidos, em que todas as palavras parecem emendadas, o humorista fala como Ali e diz que está se convertendo ao judaísmo. Seu novo nome: Izzy Yiskowitz.
Crystal foi grande amigo do boxeador e falará em seu enterro. Como menino judeu franzino que foi, ele representa a imensa quantidade de intelectuais ou aspirantes a tal que se projetavam no gigante bailarino de força quase mágica, uma espécie de vingador dos fracos, oprimidos e vítimas de bullying.
Com o tempo, Ali foi se afastando da Nação do Islã e aderiu à religião muçulmana tradicional. Continuou falando bobagens sobre os “sionistas que dominam o mundo”, mas ganhou uma visão mais sábia sobre a igualdade entre os humanos. Uma de suas filhas casou-se com um americano judeu e ele foi ao bar mitzvah, a festa de 13 anos, do neto, acompanhando tudo. De certa forma, a piada de Billy Crystal se concretizou.
A luta interior de Muhammad Ali talvez tenha sido tão importante quanto a qualidade prodigiosa que imprimiu ao esporte codificado pelos ingleses, no século XIX, de forma permitir que cavalheiros se esmurrassem sem atingir órgãos vitais.
Ainda não se sabia dos efeitos que golpes na cabeça podem ter no longo prazo. A doença de Parkinson, tal como fez com o ator Michael J. Fox, trouxe à tona um outro aspecto de grande coragem do lutador. Ele também se aproximou do sufismo, um conjunto de práticas e pensamentos místicos da religião muçulmana. Segundo a família, morreu dizendo que tinha feito o possível para ajudar o próximo.
Como conhecia as consequências de sua doença, Ali planejou em detalhes a própria cerimônia fúnebre em sua cidade, Louisville. Será num ginásio esportivo que tem o nome da grande rede americana de frango frito, baseada no estado de Kentucky.
Espera-se que a presença de Recep Tayyip Erdogan, o presidente da Turquia que sonha se converter em líder de um novo império muçulmano, não estrague o espírito da coisa. Ou, se o fizer, que pelo menos leve no queixo uma boa piada de Billy Crystal.