Sonho dourado: City de Londres quer continuar no topo
Maior preocupação do mercado financeiro é manter liberdade de operação na Europa, mesmo sem união

Primeiro, as boas notícias referentes ao Brexit. A ordem mundial não está gravemente afetada, uma vez que não houve mudança de matriz política. Estados Unidos e aliados europeus continuam exatamente onde estavam.
As Ilhas Britânicas não vão se desgarrar e sair flutuando pelo Atlântico como um iceberg descontrolado. Não haverá graves confrontos internos nem imigrantes europeus serão atacados nas ruas . Episódios isolados e degradantes serão enquadrados na força da lei. Os ingleses tampouco vão passar fome nem terão que voltar a comer apresuntado e feijão em lata, substitutos de comida de verdade pelos quais guardam um estranho afeto.
Pelo lado menos positivo, a instabilidade política e econômica vai continuar. A semana passada foi de dramáticas reviravoltas e traições e esta não será tão diferente. Para complicar, deve ser divulgado na quarta-feira o relatório Chilcot ,com os resultados da longa investigação independente sobre a participação da Grã-Bretanha na primeira guerra do Iraque.
Tony Blair, o primeiro-ministro na época, é o alvo principal. Jeremy Corbyn, o atual líder trabalhista – o mesmo partido de Blair, mas é como se fossem de planetas diferentes – está tramando para que o ex-primeiro-ministro seja acusado de crimes de guerra.
Rejeitado pela maioria dos parlamentares trabalhistas devido à atuação vergonhosa durante a campanha perdedora do plebiscito sobre a União Europeia, Corbyn só pensará em sair depois de se vingar de Blair.
A imprevisibilidade injetada pelo Brexit e o anúncio da renúncia do primeiro-ministro David Cameron, faz com que os britânicos tenham que lidar, simultaneamente, com a escolha do novo governo, antecedida pela votação no próximo líder do Partido Conservador, e a ansiedade do mundo das finanças com as futuras regras do jogo.
O mercado financeiro tem características únicas e privilegiadas por sua simbiose com o lugar onde funciona fisicamente, a City de Londres. Basicamente, a City corresponde à Londinium romana, a cidade erguida no primeiro século da era cristã, cercada de muralhas cujos vestígios existem até hoje.
O resto da cidade se espalhou à sua volta, mas desde a alta Idade Média a City se estabeleceu como centro comercial, o berço da classe que depois seria conhecida como burguesia, aliada ou rival da monarquia, dependendo de seus interesses. Muitas sedes das corporações originais continuam na City: a dos mercadores de tecidos, a dos ourives, a dos peixeiros.
Estas antigas guildas, muitas transformadas em influentes associações filantrópicas, continuam até hoje a eleger o Lord Mayor, ou lorde-prefeito, assessorado por dois xerifes. O cargo existe desde 1189. Como os cônsules da Roma antiga, o Lorde Mayor tem mandato de um ano, durante o qual usa manto de pele, chapéu de pluma, carruagem dourada e outros apetrechos que fazem a alegria da plebe em ocasiões cerimoniais.
Por trás dessa encantadora encenação existem interesses carnalmente conectados com o mercado financeiro, que hoje tem uma parte física também em Canary Wharf, a região das antigas docas.
“Londres”, no sentido de indústria financeira, hoje ocupa o primeiro lugar no Índice de Centros Financeiros Globais, à frente de Nova York. O índice analisa fatores como competitividade, infraestrutura, recursos humanos, reputação e “fatores gerais”. A instabilidade pós-Brexit pode afetar esta posição.
O que o mercado financeiro baseado em Londres mais quer, depois do plebiscito, é manter os “direitos de passaporte”. É um mecanismo que funciona como um passaporte mesmo, mas de dinheiro, muito dinheiro. Através dele, operadores da City podem exercer qualquer tipo de atividade financeira em todos os países da União Europeia, sem restrições.
Fora do mundo da fantasia, ninguém imagina que a indústria automobilística alemã queira apoiar tarifas que penalizem suas exportações ao Reino Unido ou produtores de tomate sicilianos joguem no mar suas safras só para se vingar dos britânicos malvados que votaram por sair da União Europeia.
Mas no planeta financeiro o jogo é mais rápido e competitivo. Se o dinheiro não está bem estacionado aqui, tem outra vaga ali. A França já está querendo pegar as sobras da City – incluindo aí uma vingancinha contra David Cameron, que em 2012 estendeu o tapete vermelho aos franceses interessados em se livrar da alíquota fiscal de 75% aprovada na fase enlouquecida do governo de François Hollande.
Mais discretamente, a Alemanha também sonha com uma fatia das transações em euro da City. É coisa que pode chegar a 1 trilhão de euros.
As decisões mais importantes, do presente e do futuro imediato, estão relacionadas à esfera da competitividade econômica do Reino Unido. George Osborne, o ministro da Economia que queimou a língua – e possivelmente, mas não com certeza plena, seu futuro politico – ao fazer uma campanha agressiva pela permanência na União Europeia, já anunciou a primeira providência.
Em vez de castigar o povo ignorante que votasse no Brexit, como prometeu fazer com cortes em benefícios sociais, Osborne disse que vai cortar os impostos corporativos de 20% para 15% por cento. Só para comparar, os impostos corporativos acumulados no Brasil atingem 34%.
Aumentar a competitividade econômica do país numa hora de instabilidade é coisa de adultos. As crianças ficam resmungando em casa ou saem às ruas para ouvir Bob Geldof repetir, pela milionésima vez, que os bons velhinhos do reino se transformaram em perversos destruidores do “futuro dos jovens”.