Síria sob domínio fundamentalista: era horrível, vai ficar pior ainda
Assad e seu regime maligno eram um dos postos de contenção ao jihadismo sunita, que ressurge com tudo e muda a relação de forças no Oriente Médio

O Oriente Médio mantém sua capacidade de surpreender o resto do mundo e muitos ficaram de queixo caído com a ofensiva de rebeldes fundamentalistas, numa guerra civil que parecia congelada. Em dez dias, o do regime de Bashar Al Assad, depois de desafiar tantas previsões de derrocada durante a guerra civil de 2011 a 2021, simplesmente derreteu. Sem nenhuma resistência, caíram cidades importantes como Alepo e Hama, e por fim Damasco, em lances quase inimagináveis pela rapidez e o desmantelamento das forças do regime.
Assad e seu círculo de fieis, pertencentes a uma minúscula minoria religiosa, os alauítas, simplesmente não tiveram ninguém que lutasse por eles. Removido o medo, que mantinha a disciplina de soldados de outros grupos religiosos, tudo veio abaixo.
Os russos tiraram sua frota do porto de Tatus e o Irã tirou seus generais de um país no qual se moviam como se estivessem em casa, mandando e desmandando nos aliados árabes. A derrocada foi escrita na parede quando a família de Assad fugiu para a Rússia.
A mulher, Asma, que teve câncer de mama em 2018 e em maio passado anunciou uma leucemia mieloide aguda, deixou para trás closets repletos de sacolas Louis Vuitton e outras marcas de luxo, saqueados pela população. Ela praticamente já não saía da Síria, mas mantinha a pose que a fez ser considerada, antes da terrível violência que dominou a Síria durante dez anos, um modelo de elegância e modernidade no mesmo pé que a rainha Rania da Jordânia.
Regime de terror
Asma nasceu na Inglaterra, filha de profissionais sírios, e fez carreira no mundo das finanças antes de se casar com o oftalmologista algo tímido, alto e de olhos azuis. Deslocado para se tornar o ditador hereditário depois da morte do irmão num acidente de automóvel, Bashar Assad não parecia feito do mesmo material implacável do pai.
A guerra civil mostrou que era muito pior, liderando um regime de terror ancorado em torturas em massa, bombardeio indiscriminado de civis e até uso de armas químicas. Os rebeldes e as populações que os apoiavam eram muçulmanos sunitas, “mereciam” todos os horrores, do ponto de vista de Assad e companhia.
Quando a “ofensiva dos dez dias” começou, muitos analistas consideram Assad um mal enorme, o chefe de uma ditadura militar brutal, mas mesmo assim menor diante de fanáticos fundamentalistas que estão tentando apresentar uma imagem mais palatável, embora seja impossível esquecer que são do mesmo tronco jihadista que gerou a Al Qaeda e, mais adiante, o Estado Islâmico.
Agora não sobrou tempo para testar a teoria do mal menor. A milenar Síria está sob domínio fundamentalista, algo apenas comparável ao Afeganistão.
Mosaico de religiões
Israel também tendeu a “preferir” – entre aspas, por causa dos complicadores – um Assad fraco a um movimento fundamentalista forte na sua fronteira. Ao mesmo tempo, a queda de Assad representa um grande golpe para o Irã, o maior inimigo de Israel. O eixo xiita, que vai do Irã, passa por uma parte do Iraque, percorre a Síria e chega no Líbano sofreu um gravíssimo golpe.
Foi uma tremenda ironia, como acontece frequentemente no Oriente Médio: a ascensão dos jihadistas está conectada ao enfraquecimento do Hezbollah sob as bombas israelenses, agora suspensas num cessar-fogo altamente vulnerável.
Recapitulando para relembrar o complexo mosaico de religiões e facções da Síria. O regime de Assad era, originalmente, laico e socialista, tendo origem num golpe militar desfechado pelo pai dele, Hafez Assad, e seu grupo de fieis, pertencentes a uma seita muçulmana ultraminoritária, os alauítas.
Seguiam a ideologia do Partido Baath, a mesma de Saddam Hussein no Iraque. Tinham, na sua concepção, um ímpeto nacionalista, arabista e modernizante. Um de seus fundadores, Michel Aflaq, viveu dez anos exilado no Brasil. A aliança com Moscou sobreviveu ao fim do comunismo, e o caráter excepcional da elite alauita representou certas garantias para outras minorias, como os cristãos.
Guerra santa
Quando a guerra civil eclodiu, os principais grupos rebeldes eram jihadistas, defensores da guerra santa de modelo sunita, identificados com a ideologia do extremismo muçulmano que prega a criação de um grande estado abarcando os países muçulmanos, sob domínio religioso.
Assad apelou para os radicais da tendência oposta, os xiitas que dominam o Irã e praticamente mandam no Líbano, através do Hezbollah. Outros grupos, como os cristãos, ameaçados de pura e simples extinção justamente no lugar onde o cristianismo originalmente nasceu e se expandiu, fizeram a opção pela sobrevivência. Melhor ficar do lado de Assad do que dos fanáticos da mesma cepa que a Al Qaeda ou o Estado Islâmico, o mais radical grupo fundamentalista sunita, que considera os xiitas hereges e perseguiu barbaramente os cristãos e outras minorias quando controlou uma vasta área entre a Síria e o Iraque.
Parece complicado, mas é obrigatório para entender a composição de forças e as alianças que se formaram, mesmo quando parecem desafiar a lógica. Por exemplo, os Estados Unidos e o Irã já uniram forças para combater o Estado Islâmico no Iraque. A população sunita da Síria, que é majoritária, ficou do lado dos jihadistas também por questão de sobrevivência: quando você é bombardeado impiedosamente por um dos lados, tende a simpatizar com seu oposto. Quando Israel pulverizou Hassan Nasrallah, o líder do Hezbollah, sírios sunitas comemoraram e distribuíram doces, ainda sob o impacto dos ataques desfechados contra eles pelos xiitas libaneses no ápice da guerra civil.
Nessa guerra, uma das maiores vitórias estratégicas do Irã foi conseguir garantir a sobrevivência de seu aliado na Síria, consolidando assim o “arco xiita”. E um de seus maiores erros foi bancar e insuflar o Hamas a invadir o sul de Israel e praticar as atrocidades que acabaram levando à guerra atual em Gaza, com múltiplas outras frentes. A “perda” da Síria é um golpe que repercute até Teerã e talvez esteja deixando alguns aiatolás arrancando os cabelos debaixo dos turbantes.
Barbudão tradicional
É impossível não ver a vitória dos rebeldes na Síria como um desdobramento do conflito entre Israel e Hamas em Gaza, uma espécie de lei das consequências indesejadas em que o enfraquecimento de tradicionais inimigos de Israel alimenta um movimento jihadista.
O grupo é chamado em árabe de Hayat Tahir al-Sham, Organização para a Libertação do Levante. Seu líder, um barbudão tradicional que usa o nome de guerra de Abu Mohammad Al-Julani, parece ter feito um mídia training para passar uma imagem menos radical e até com toques nacionalistas.
Ele apelou às minorias para que ficassem seguras de que não seriam perseguidas. É claro que, imediatamente, curdos, cristãos e outros grupos na mira do fundamentalismo começaram a fugir das áreas tomadas pelos jihadistas.
Sob Assad, Israel tinha uma espécie de acordo tácito com a Rússia: céus abertos sobre a Síria, sem risco do uso das sofisticadas baterias antiaéreas russas, para atacar libaneses do Hezbollah e iranianos congregados em Damasco e outros pontos da Síria, como fez com frequência. E se os jihadistas tomarem essas baterias, como fica?
“Nada a ver com isso”
Donald Trump fez um bom resumo da situação ao tuitar que Assad fugiu porque “seu protetor, a Rússia, Rússia, Rússia, não estava mais interessado em protegê-lo”. Antes, havia dito:
“Os Estados Unidos não devem ter nada a ver com isso. Essa luta não é nossa. Vamos ficar fora dessa”.
O problema é que não há como isolar a Síria do Oriente Médio e de um futuro grande acordo com os países árabes que querem a proteção da aliança com os Estados Unidos, a base do plano Trump para a região.
A súbita e surpreendente vitória da rebelião na Síria muda vários fatores de um equilíbrio de poder que vigorava há décadas.
Só para lembrar: a ONU calculou em mais de 305 mil mortos as vítimas da guerra civil que incinerou a Síria entre 2011 e 2021. É um espanto que o regime tenha se derretido com tanta rapidez. Obrigados a combater, com ódio no coração por Assad e companhia, os soldados largaram mão. Sem soldados, não houve resistência.
A vingança contra os leais ao regime deverá ser brutal. A alegria por ver o fim de uma tirania brutal não elimina o fato de que o que vem por aí vai ser pior.