Ser líder na Rússia é uma profissão de altíssimo risco e Putin sabe disso
Com um corpo de guarda-costas com treinamento alfa e o total controle sobre a máquina do poder, o presidente russo está garantido - exceto pela história

Um dos maiores indicadores de avanço civilizatório é o que os governantes fazem depois de deixar o poder. Criar uma fundação e viver de livros, palestras contabilizadas e consultorias disfarçadas são sinais de desenvolvimento político.
Certamente não são opções à disposição de Vladimir Putin. Tendo atravessado uma gigantesca linha vermelha com a invasão da Ucrânia, ele só tem duas alternativas para continuar no poder até quando a progressão natural da vida permitir: vencer ou vencer.
E se as sanções provocarem apuros econômicos que insuflem levantes populares? Altamente improvável. Putin continua a desfrutar de altos níveis de aprovação, como o homem que salvou o país dos escombros pós-União Soviética. Os apertos possivelmente serão debitados na conta da “Otan”, que virou sinônimo do mal sob influência bem azeitada máquina de propaganda.
Um assassino aleatório, que aproveite uma janela de oportunidade? A Rússia tem antecedentes históricos. Lênin levou dois tiros de Fanny Kaplan, militante do Partido Socialista Revolucionário, em 30 de agosto de 1918, quando saía da visita a uma fábrica de armamentos e a Revolução Bolchevique mal havia começado.
Fanny, uma judia ucraniana de 28 anos que foi executada três dias depois, achava justamente que os bolcheviques haviam traído a revolução ao darem o golpe que instituiu o regime de partido único.
Sempre pairou a hipótese de que as balas alojadas no corpo de Lênin contribuíram para a sequência de derrames que o deixaram inválido e acabaram provocando sua morte menos de seis anos depois.
Também nunca foi eliminada completamente a suspeita de que o ascendente Josef Stálin tenha apressado os acontecimentos com veneno de rato para garantir seu lugar como sucessor.
A morte do próprio Stálin, em 1956, por causas naturais, pode não ter sido tão natural assim. E não só pela protelação do atendimento quando foi encontrado caído no chão do quarto da sua dacha, também com vários AVCs.
Lavrenti Beria, o monstruoso chefe da NKVD, a polícia política, chegou a dizer ao círculo íntimo do chefe que havia envenenado Stálin, salvando “todos vocês”.
Com o controle do aparato repressivo, Beria integrou a troika que sucedeu Stálin, mas não completou um ano no topo. Nikita Khrushchev conseguiu o prodígio de enganar o homem mais bem informado da União Soviética, articulando sua prisão durante uma reunião da cúpula do partido.
Foi convocado para a arriscadíssima missão ninguém menos do que o marechal Georgi Zhukov, o comandante da vitória contra a Alemanha nazista. Também foi preciso um militar de alta patente, o general Pavel Batitski, para executar a sentença de morte por traição dada por um tribunal secreto — exatamente o mesmo mecanismo que havia devorado milhões de comunistas dedicados.
Beria levou um tiro na testa. Três meses antes, tinha sido capa da revista Time.
Khrushchev foi o primeiro líder soviético a deixar vivo o poder, em 1964, confinado a sua dacha. No golpe interno que o derrubou, contou a insatisfação pelo modo como havia cedido aos Estados Unidos na Crise dos Mísseis, quando recuou diante da possibilidade de uma guerra nuclear e retirou os foguetes secretamente instalados em Cuba.
Apesar da pancadaria que as forças russas estão levando na Ucrânia, nem de longe se vislumbra uma retirada humilhante. Vladimir Putin também mantém um controle muito mais sofisticado dos siloviki, os “homens fortes” que devem a ele suas posições no topo do aparato de segurança.
Existe a possibilidade de um racha se as coisas derem muito errado na Ucrânia? Foi impossível deixar de pensar nisso depois da cena inacreditável, transmitida ao vivo pela televisão, em que Putin humilha o diretor do Serviço de Informações Externas, Serguei Narishkin, por ter usado o tempo futuro para dizer que apoiaria a independência das duas regiões separatistas da Ucrânia – decretada logo em seguida.
“Apoiará ou apoia? Fale claramente”, intimidou Putin, num momento em que ficou muito parecido com Stálin e suas manobras para enquadrar os mais fieis seguidores.
Narishkin é do círculo mais íntimo de Putin, de apenas cinco integrantes (os outros são Serguei Lavrov, o ministro das Relações Exteriores; Nikolai Patrushev, secretário do Conselho de Segurança; Igor Sechin, executivo da petrolífera Rosneft, e Serguei Shoigu, ministro da Defesa).
“As pessoas estão pensando muito mais forçadamente não só sobre uma Rússia depois de Putin, mas em como isso pode acontecer”, escreveu Mark Galeotti, especialista em história russa e inventor do termo guerra híbrida.
“As únicas instituições que seriam capazes de derrubar Putin num golpe seriam as agências de segurança ou, mais plausivelmente, o exército”, anota Galeotti, referindo-se aos boatos, “fantasiosos”, de que Serguei Shoigu estaria arquitetando uma conspiração.
O oposto também está sendo especulado: Shoigu pode ser responsabilidade pelo balanço de uma guerra que não está saindo como o esperado.
Putin certamente não deixa nada ao acaso e, mais do que a FSB, a sucessora da KGB onde ele fez carreira, é o Serviço Federal de Proteção que forma a agência mais fechada em torno do líder.
Dos provadores de comida aos testadores de ar, tudo está a cargo desse serviço, incluindo os guarda-costas que operam pelo sistema consagrado de quatro círculos.
Eles trabalham apenas até os 35 anos, precisam ter entre 1,75 e 1,90 de altura, habilidades como resistir ao frio — até 40 graus negativos em Moscou — e não transpirar no calor, e entender de “psicologia operacional”, para saber quem são as pessoas que se aproximam de Putin. Entre seus equipamentos, pistolas Gurza de calibre 9 milímetros e maletas e guarda-chuvas forrados com kevlar, a fibra dos coletes a prova de balas, segundo o site Russia Beyond.
Todo mundo sabe que o czar Nicolau II foi executado, com a família inteira, depois da revolução bolchevique, por ordem secreta de Lênin. É menos lembrado que outros quatro czares foram assassinados nos dois séculos anteriores, em golpes palacianos, intrigas familiares (Pedro III, por ordem da mulher, Catarina, a Grande) e num atentado (Alexandre I, numa bomba jogada por um revolucionário polonês que explodiu junto).
Os 22 anos de estabilidade comandada por Putin, que pareciam ter enterrado as sucessões turbulentas do passado, foram brutalmente interrompidos por ele mesmo.
“Existe um Brutus na Rússia? Existe um coronel Stauffenberg mais bem-sucedido entre os militares russos?”, tuitou o senador americano Lindsey Graham, referindo-se ao homem que matou Júlio César e à fracassada conspiração contra Hitler.
Graham foi criticado pela sugestão, incompatível como o posto, mais fato é que expôs em palavras públicas o que muitos estavam pensando, por expressão de desejo ou obrigação profissional.
“Por enquanto, tanto nós quanto os russos estamos atrelados a Putin”, escreveu Galeotti.
“A história não é um mapa do futuro, mas ela nos lembra como a guerra pode mudar tudo. Parece quase inconcebível que o reinado de Putin possa terminar, mas agora que ele fez uma jogada de quebrar a mesa, todas as apostas estão valendo”.