Racha no mundo do ateísmo: Richard Dawkins rompe com associação
Seria de dar risada pelas comparações com as heresias religiosas, mas o assunto é sério e envolve um dogma politicamente correto

O sexo é determinado no momento da concepção, evolui quase que sem desvios durante a gestação e ninguém mais se surpreende na hora do nascimento porque o ultrassom já mostrou se é menina ou menino. O que acontece depois é sujeito a inúmeros fatores, inclusive, em alguns casos, daqueles que se sentem identificados com o sexo oposto ao mostrado por seus cromossomas e aparelho genital. Defender esses fatos apresentados de maneira leiga virou, ironicamente, uma heresia e o mais famoso dos ateus, o biólogo e zoólogo britânico Richard Dawkins, se viu obrigado a tomar uma atitude radical: rompeu com a associação de defesa do ateísmo, da qual era o nome mais conhecido, por tirar do ar um artigo no qual o autor diz que gênero é biológico.
O assunto já tem provocado um bocado de discussões entre cientistas conhecidos anteriormente por posições progressistas e militantes transgêneros – ou seja, é mais um caso de esquerda brigando com esquerda, com a habitual virulência. Dawkins, que fez carreira com livros como Deus, Um Delírio, acusou a Fundação da Liberdade da Religião (“da”, não “de”, significando o direito de não ter religião), de se curvar à “histeria” da cultura do cancelamento e tentar impor uma nova “religião do transgenderismo”.
Dawkins seguiu os passos de dois cientistas importantes ao romper com a fundação, Jerry Coyne e Steven Pinker. Os dois discordaram de um artigo de uma pessoa chamada Kate Grant – não vamos entrar em detalhes – dizendo que “qualquer tentativa de definir o que é uma mulher em termos biológicos é inadequada”.
“Mulher é quem diz que é mulher”, defendia. Isso pode ser aceito em várias esferas, inclusive a social, mas não pode alterar a realidade biológica.
Em resposta, Jerry Coyne, biólogo americano, escreveu um artigo intitulado “Biologia não é intolerância”. Cometeu ainda a “heresia” de defender a definição biológica de mulher “com base no tipo de gameta”.
“DOGMA E APOSTASIA”
Foi esse artigo retirado do site da fundação, com pedido de desculpas. Coyne subiu nas tamancas metafóricas: “A ideologia de gênero que levou à retirada do meu artigo tem muitos aspectos de religiões e seitas, inclusive dogma, blasfêmia, crença no que é palpavelmente falso (‘Mulher é quem diz que é mulher’), apostasia e tendência a ignorar a ciência quando ela contradiz a ideologia preferida”.
“Por que seria possível mudar de sexo quando isso não acontece com outras características físicas? Sentimentos não criam realidades. Ao contrário, em biologia, ‘sexo’ é tradicionalmente definido pelo tamanho e a mobilidade das células reprodutivas”.
“Não é ‘transfóbico’ aceitar a realidade biológica do sexo binário e rejeitar conceitos baseados em ideologia”, concluiu.
Steven Pinker, conhecido psicólogo, pediu para sair em sinal de solidariedade a Coyne e agora Richard Dawkins engrossou o coro.
“TRAIR LINGUAGEM OBJETIVA”
A discussão obviamente não é nova nem envolve apenas quantos anjos cabem na cabeça de um alfinete. Mulheres trans podem e devem ser aceitas da maneira como se definem, mas há algumas áreas em que isso é errado ou complicado. Nos esportes, por exemplo, a biologia pesa a favor de corpos equipados com vantagens masculinas em matéria de tamanho, musculatura, força, capacidade respiratória e cardíaca. É também discutível colocar pessoas com corpos masculinos, inclusive genitais, em espaços como abrigos para mulheres agredidas ou penitenciárias femininas.
Dawkins já está na discussão há algum tempo. Em 2021, perdeu o prêmio de “humanista do ano”, dado em 1996, por dizer coisas como: “Uma mulher trans é mulher? Questão puramente semântica. Se a definição é por cromossomas, não. Se é por autoidentifcação, sim”.
“Dizer que ‘uma mulher pode ter pênis’ soa como um assunto sem importância, mas para um cientista é importante porque é como trair a linguagem científica objetiva”.
Por mais explicações que dê, acaba inevitavelmente colocado na mesma categoria que a escritora J. K. Rowling, a quem ele já manifestou solidariedade pelas reações virulentas que provoca nesse campo. Defender fatos científicos não é transfobia, mas talvez seja preciso uma ajuda superior para convencer disso a turma contrária.