Putin vai invadir a Ucrânia? Não, mas quer parecer que o fará
Brincar de gato e rato é uma especialidade aperfeiçoada pelo líder russo e a concentração ostensiva de tropas é uma arma desse arsenal
Quando quer invadir um país, Vladimir Putin manda “homens verdes”, tropas especiais que se infiltram na calada da noite e agem sem alarde até que a situação esteja consumada.
Foi isso que fez quando tomou um pedaço da Ucrânia fronteiriço com a Rússia e depois simplesmente anexou toda a península da Crimeia.
Os dois territórios tinham uma população identificada com a Rússia, o que facilitou enormemente a tarefa.
Isso e a fraqueza implícita dos grandes atores que poderiam ter reagido – os Estados Unidos e as potências europeias -, mas calcularam, com razão, que os riscos seriam altos demais. Em lugar da força, optaram por sanções, que incomodam, mas nem de longe mudam os objetivos estratégicos de um homem que calcula friamente todos os seus movimentos no xadrez geopolítico.
A concentração de tropas russas na fronteira com a Ucrânia é o mais recente movimento desse xadrez.
Putin quer pressionar a Alemanha e a França, os países que contam mais na União Europeia, a arrancar mais docilidade do governo ucraniano.
Recentemente, o governo ucraniano do presidente Volodymyr Zelensky tomou algumas medidas que incomodaram os russos, como o fechamento de órgãos de propaganda disfarçados de veículos noticiosos, e a declaração de que a reintegração da Crimeia é um objetivo permanente do Estado.
Com a sutileza habitual, o governo russo acusou os ucranianos de criar um ambiente de guerra e potencialmente ameaçar de genocídio as minorias que têm o russo como língua principal.
Se alguém pensou no lobo acusando o cordeiro de fazer inúmeras provocações, acertou em cheio.
Mostrar força – agora, incluindo no pacote, os novos tanques robotizados, sem soldados humanos – faz parte da complicada vida dos dois países tão parecidos e tão diferentes como a Rússia e a Ucrânia.
É claro que o barulho feito por Putin ao deslocar mais de 80 mil tropas para a região fronteiriça também é um teste para Joe Biden.
Quando era vice de Barack Obama, Biden foi encarregado do caso Ucrânia, seguindo a política altamente cautelosa – alguns diriam até quase indiferente – do presidente no poder.
Agora, Biden tem a chance de emplacar suas próprias ideias sobre um problema quase impossível de ser resolvido, quer seja pela diplomacia, quer seja pela guerra.
Na sua primeira entrevista como presidente, Biden concordou com o entrevistador que Putin é “um assassino”. Obviamente, ele sabia que a pergunta seria feita e tomou a decisão de respondê-la da maneira que fez.
Como lidar com “um assassino”? Como exercer o poder de pressão dos Estados Unidos sem provocar respostas mais virulentas ainda? Como impedir que a Ucrânia volte a entrar numa guerra civil de média ou alta intensidade, com a região rebelada que se considera russa sempre pronta para justificar encrencas mais complicadas?
São questões de longo alcance que Biden vai ter que descascar.
Tem um antagonista que se considera vencedor, tendo garantido a permanência no poder até 2036 e colocado um adversário que o incomodava, mas não ameaçava, Alexei Navalny, numa prisão de regime insuportável até mesmo para um homem que sobreviveu a um atentado com Novichok, a pior arma biológica do arsenal de venenos do Kremlin.
E se Putin, contrariando o que foi aqui argumentado, realmente intervir militarmente na região fronteiriça?
Qualquer resposta no teatro de operações só pode ser dada pelos ucranianos, que são equipados pelos Estados Unidos, mas não têm condições de ser páreo para os russos.
O desequilíbrio de forças provoca um outro fator de extremo potencial explosivo: ver aliados dos Estados Unidos e da União Europeia ser massacrados por uma potência agressora quase obrigatoriamente exigiria uma resposta que ninguém quer dar.
Putin sabe que só por acenar com o uso da força já cria um ambiente de alta ansiedade e é isso que está explorando.
Depois de mostrar os dentes, o lobo pode recuar?
O escritor russo Chekov criou uma famosa regra da carpintaria dramatúrgica conhecida como “o revólver de Chekov”. Estabelece ela: “Se no primeiro ato você pendurou uma pistola na parede, então no ato seguinte ele tem que ser disparado. Caso contrário, não o coloque lá”.
Em outras palavras, todos os elementos de uma obra têm que ter uma função.
E se você colocou 85 mil homens numa fronteira conflagrada? Para não usá-los, Putin terá que achar que ganhou alguma coisa.