Putin como “exorcista-chefe”? É uma das loucuras da Rússia descontrolada
Ele diz ou permite dizer insanidades para que a realidade da guerra contra o Ucrânia pareça normal - mas também acredita nos próprios absurdos
A Ucrânia está tomada por seitas satânicas e Vladimir Putin tem um papel vital como exorcista-chefe para vencê-las.
Parece maluquice – mais uma da série em que autoridades russas se especializaram, inclusive porque os atos malignos em estados puro que vemos desde o início dessa guerra levam a assinatura do todo-poderoso do Kremlin.
Voldemort ou Sauron são alguns dos nomes tirados da literatura de fantasia e aplicados a Putin.
O Putin racional e controlado propôs ontem uma ordem mundial baseada na lei e na ordem, disse que não tem intenção de usar armas nucleares – “Não faz sentido, político ou militar” – e se investiu do papel de nobre protetor das nações que rejeitam o “jogo perigoso, cruento e sujo” dos americanos.
O irracional é o que promove narrativas como a da “dessatanização” da Ucrânia, defendida por um subordinado dele, Alexei Pavlov, integrante do Conselho de Segurança.
Só para lembrar: Putin alegou a “desnazificação” da Ucrânia como objetivo da invasão do país, em fevereiro.
O que pode ser pior do que um nazista? Uma entidade demoníaca, claro.
Diz Pavlov: “Usando técnicas de manipulação da internet e psicotecnologias, o novo regime transformou a Ucrânia de estado soberano em hiperseita totalitária”.
Que precisa ser “dessatanizada”, claro.
O patriarca Kirill, autoridade máxima da Igreja Ortodoxa Russa, concorda, acha que Putin está combatendo o Anti-Cristo e tem o papel de exorcista chefe.
Insanidades desse nível fazem parte de um pacote dirigido não apenas ao público interno, como externo também. Apresentar Putin como o defensor de valores tradicionais cristãos ecoa entre alas da direita conservadora, especialmente dos Estados Unidos, compostas por um público chocado com comportamentos extremos, como intervenções médicas para alterar características sexuais de menores com disforia de gênero. Ontem, ele falou em “elites neoliberais” e globalista, um gesto nada velado em direção aos conservadores.
Os russos são, tradicionalmente, bons em explorar vulnerabilidades dos países adversários.
Outra tática de Putin tem sido deixar aliados fazer as declarações mais absurdas para que ele próprio pareça comparativamente moderado. É por isso, por exemplo, que o líder checheno Ramzan Kadirov tem liberdade para criticar a ação militar russa como “muito fraca” e defende que a Ucrânia seja literalmente varrida do mapa. Também disse que os combatentes chechenos não vão mais fazer prisioneiros de guerra – “Vamos queimá-los”.
Na televisão, apresentadores e comentaristas disputam quem vai fazer a declaração mais alucinada, defendendo o uso de armas nucleares não só contra a Ucrânia como contra o resto do mundo que apoia o país, o que redundaria numa guerra total com a aniquilação de pelo menos dois terços da humanidade.
O fato é que, por meios convencionais, a Rússia não consegue dominar a Ucrânia. Mesmo uma fatia dos 20% de seu território que ocupa está sujeita a contra-ofensivas ucranianas. A mais simbólica, no momento, é na cidade de Kherson. Pelo menos uma parte dela é dada como perdida. Os ocupantes já desmontaram até uma estátua de Potemkin, o estadista e amante predileto da imperatriz Catarina, a Grande. Num detalhe tétrico, tiraram os ossos do príncipe da cripta na catedral de Kherson, cidade fundada por ele.
Potemkin passou para a história como o inventor de uma aldeia fake, que mandava montar e desmontar durante a visita de Catarina à Crimeia, para dar a impressão de prosperidade à medida em que a czarina passava. O território havia sido anexado em 1783, depois de vitórias russas sobre a Turquia otomana.
O problema, para Putin e asseclas, é que dá para falsificar uma paisagem, para quem tem muito poder, mas não uma guerra. Nem o título de exorcista-chefe resolve isso.