Proibir alunos estrangeiros em Harvard é encenação de Trump ou besteira?
O presidente americano pode estar usando a tática de colocar o bode na sala; caso contrário, seria uma atitude autodestrutiva

Harvard, a mais famosa universidade do mundo, tem 388 anos de história, 161 prêmios Nobel e oito presidentes dos Estados Unidos. Isso é garantia que sempre acerte? De jeito nenhum. Muitas das reclamações de Donald Trump, sobre acomodar atitudes antissemitas e só dar espaço ao pensamento único de esquerda, têm uma boa dose de razão. O que é insensato é “cassar” a autoridade da universidade de dar certificados necessários para os vistos a estudantes estrangeiros, uma invasão de competência que foi embargada na justiça, mas criou uma nuvem de insegurança para os alunos de fora.
Hoje, 27% dos estudantes de Harvard são estrangeiros, num total de 6,8 mil. Entre mensalidades e alojamento, cada um paga 89 mil dólares, uma facada que os pais dotados de recursos assumem com orgulho, contando com todas as portas que serão abertas simplesmente com a menção do nome mágico e não só a formação profissional, mas os contatos preciosos para toda a vida.
Trump quer que a universidade dê os nomes e a ficha de alunos estrangeiros, incluindo eventuais ações disciplinares. Não é esse o papel da universidade. Não faltam recursos às autoridades do governo para investigar atos potencialmente ilegais, em especial nos protestos que glorificam o Hamas e responsabilizam Israel por todos os crimes que seus cidadãos tenham sofrido. Basta ler o absurdo manifesto de trinta entidades estudantis assinado logo depois das atrocidades cometidas pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, quando Israel ainda nem havia começado a retaliação.
Mas penalizar em massa os estudantes estrangeiros não é a resposta. Atrair cérebros do mundo todo é uma das características que sustentou as grandes potências, incluindo a Roma imperial e a católica. Muitos dos maiores gênios do mundo rumaram para as universidades americanas, inclusive na época da perseguição aos judeus europeus no século passado. Verbas generosas e o ambiente de liberdade acadêmica contribuíram para colocar os Estados Unidos no topo das inovações científicas e tecnológicas. O alemão Albert Einstein, o italiano Enrico Fermi e o húngaro Leo Szilard, com trabalhos vitais para a bomba atômica, são apenas alguns exemplos de uma lista imensa.
PENSAMENTO ÚNICO
Detonar deliberadamente esse processo é uma atitude autodestrutiva, mesmo para um governo que proclame o isolacionismo na política externa. O desmonte da agência Usaid foi apenas um dos exemplos – através dela, os Estados Unidos influenciavam países estrangeiros, inclusive através de uma multiplicidade de ONGs, para o bem ou para o mal.
O preço a pagar por um ambiente de pesquisa, criatividade e inovação seria a propagação das causas abraçadas pela ideologia woke? Ter centros de estudos de gênero e outras disciplinas ideologizadas é compensado pelos gênios da computação, da física, da matemática ou da economia? Ou nem as disciplinas científicas escapam do emburrecimento do pensamento único?
Harvard, como outros centros avançados de estudos, copiados em tudo pelas universidades brasileiras (sem, infelizmente, os prêmios Nobel), é dominada pela turma woke. Raros são os professores que se pronunciam contra os excessos.
Uma exceção é o psiquiatra Omar Sultan Haque, da celebrada faculdade de medicina de Harvard. O panorama traçado por ele é impressionante. “Há exceções, mas no todo Harvard se afastou de sua missão fundacional de buscar a verdade sem ideias preconcebidas e se tornou ideologicamente motivada, como uma igreja laica ou um think tank partidário”, diz ele.
“A cultura e as práticas da universidade priorizam a conformidade ideológica em prejuízo da inquisição e do debate, suprimindo pontos de vista divergentes e comprometendo a liberdade acadêmica.”
‘MÍOPE E INTOLERANTE’
Mais: “Continuam a ser populares no campus alguns estereótipos que são herança do racismo de esquerda, tal como a ideia de que a identidade racial de uma pessoa é fundamental para os seus estudos acadêmicos; que as pessoas devem ser divididas entre grupos imutáveis de ‘opressores’ e ‘oprimidos’; que o racismo é específico de uma raça, em vez de uma propensão universal e vergonhosa da natureza humana”.
Segundo Haque, Harvard se tornou “mais ideologicamente homogênea” do que universidades mantidas por entidades cristãs, tendendo a ser “míope, intolerante e anti-intelectual”.
Isso não vai mudar por intervenção do governo. As forças sociais opostas precisam se organizar e se contrapor. Por exemplo, alunos judeus religiosos levantam manifestações antissemitas de colegas e os expõem a eventuais empregadores. É uma reação legítima.
Nem toda a direita concorda com a atitude de Trump, embora todos vejam como as universidades de forma geral se tornaram hostis a seus valores. O Wall Street Journal fez um editorial contra a iniciativa do governo Trump, condenando o “ataque sem visão contra uma das maiores forças competitivas” dos Estados Unidos.
É claro que não existem respostas fáceis. Onde está a verdade, a Veritas consagrada no lema de Harvard? Talvez a intervenção tenha sido uma forma de agitação típica de Trump, que já havia cortado as verbas do governo à riquíssima universidade. Mas o problema continuará do mesmo tamanho depois de retirado o bode da sala.