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Profetas dos palavrões

Dizer a verdade não é dizer qualquer coisa que venha à cabeça

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 4 jun 2024, 10h04 - Publicado em 10 set 2023, 08h00

O Partido Socialista de Salvador Allende “era mais de esquerda do que o Partido Comunista” (palavra de um general da KGB). O presidente intrigava os cubanos por seus hábitos caros e provocou deliberadamente extremos de radicalização do Chile. Quando tudo deu errado, suicidou-se. Podem apostar que ninguém vai dizer isso nos cinquenta anos do golpe militar no Chile. Ao contrário, todos estarão dedicados a acender velas no altar do martírio de Allende, sem aproveitar para entender como os dois blocos da Guerra Fria disputaram cada centímetro do território chileno, tirando todos os truques sujos da caixa de ferramentas. Os Estados Unidos ganharam, por pouco — e em questão de anos a atuação do governo Nixon foi vasculhada no Senado americano, propiciando até leis que proibiam esse tipo de intervenção. Nada nem remotamente parecido aconteceu em Cuba ou na União Soviética, que perderam o Chile, mas ganharam a narrativa, ajudados por um regime simplesmente bárbaro e uma ditadura personalista, ao contrário dos comparativamente legalistas militares brasileiros que jamais escorregaram para uma figura como a de Augusto Pinochet.

“O discurso brutalista em que cada palavra é um punhal à procura da garganta do inimigo”

O golpe no Chile deixa assim de servir como um dos exemplos mais trágicos do que acontece quando a radicalização se infiltra e uma parte do país passa a ver a outra como o inimigo a ser eliminado — sendo plenamente correspondida. A redemocratização latino-americana abrandou os discursos e fez ressurgir a procura por consensos, o caminho nada sexy dos praticantes da conciliação política. O discurso brutalista em que cada palavra é um punhal à procura da garganta do inimigo ressurgiu nos últimos anos e envenena até chefes de Estado que deveriam pelo menos fingir respeito pelos cargos em que se encontram. A ascensão de Javier Milei na Argentina é exemplo de como os profetas dos palavrões destruidores confundem “dizer a verdade” com dizer barbaridades. Numa entrevista a uma rádio colombiana, Milei caprichou: “Que é no fundo um socialista? É um lixo, um excremento humano que, por não suportar o brilho de outro ser humano, está disposto a que todos fiquem na miséria”. O presidente Gustavo Petro, que se considera um gênio do ex-Twitter, qualificou: “Isto é o que dizia Hitler”. É um exemplo de como até a sardônica lei de God­win, aquela segundo a qual tende a 100% a probabilidade de que em discussões na internet surja uma comparação envolvendo Hitler ou os nazistas, deixou de ter efeito dissuasivo. Os partidários de Milei (mileinaristas?) e de Petro acharam o máximo.

“A obstinação e a convicção exagerada são a prova mais evidente da estupidez”, dizia Montaigne. “Existe algo mais convicto, resoluto, desdenhoso, contemplativo, grave e sério do que um asno?”. O fino Montaigne largou tudo e passou anos trancado na torre do castelo da família, longe do horror das guerras religiosas que assolaram a França. Parece incrível que esse conflito grassou nos países mais adiantados do mundo à época, da mesma forma que soa absurdo o universo tétrico da tortura e das execuções secretas das ditaduras latino-americanas de apenas cinquenta anos atrás. Não podemos esquecer como foi custoso sair disso e como não foram os palavrosos, mas os negociadores que conseguiram navegar com humildade para o outro lado.

Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858

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