Primeiro gasolina, agora carne: os estragos de hackers na economia
Não bastasse a demanda aquecida, os preços em alta e a perspectiva de inflação, Estados Unidos sofrem com piratas cibernéticos

Capturar todo o funcionamento digital de uma empresa que opera numa área de importância vital para a economia deveria ser considerado um ato de guerra. Estranhamente, o governo americano tem reagido com alguma passividade aos ataques de piratas digitais com possível origem na Rússia – onde qualquer coisa desse tipo só acontece com cumplicidade oficial.
A vítima do momento é a JBS, a gigante da carne conhecida por outros motivos no Brasil. A direção da empresa sediada em Greeley, no Colorado, informou que o ataque afetou servidores da TI nos Estados Unidos, no Canadá na Austrália. Uma empresa de segurança cibernética que cuida de emergências do tipo foi contratada para reforçar a resposta da JBS.
A empresa responde por 20% do abate em território americano. O ataque “não poderia ter acontecido num momento pior”, avaliou para o MarketWatch o especialista em cadeias alimentares Isaac Olvera.
O começo do verão no hemisfério norte abre a “temporada do churrasco” nos Estados Unidos, onde o aumento global dos preços da carne já está sendo visto como uma das fontes potenciais da inflação propiciada pela demanda aquecida pós-pandemia e as enxurradas de dinheiro injetadas pelo governo para recuperar a economia.
O ataque de hackers, atribuído ao grupo de crimes cibernéticos chamado REvil , também conhecido como Sodinokibi, é o segundo contra um elo vital da cadeia de abastecimento em menos de um mês.
O primeiro atingiu o Colonial Pipeline, oleoduto que vai do Texas até Nova Jersey, atendendo metade da demanda da Costa Leste.
O ataque obrigou a empresa, pertencente a um grupo de investidores e fundos de pensão, a operar em esquema off-line. As filas nos postos e o aumento episódico da gasolina pintaram, momentaneamente, uma imagem muito negativa, evocando a época do boicote do petróleo.
A empresa não fez segredo: pagou o resgate exigido em bitcoins, numa quantia equivalente a 4,4 milhões de dólares.
“Dezenas de milhões de americanos dependem da Colonial”, disse um porta-voz da empresa. “São hospitais, serviços de emergência, departamentos de polícia, corpos de bombeiros, aeroportos, caminhoneiros e o público em geral”.
Ao Wall Street Journal, o CEO da empresa, Joseph Blount, disse que autorizou o resgate porque não dava para saber até que ponto as operações estavam comprometidas e quanto tempo levaria para retomá-las.
A atitude da Colonial Pipeline explicitou o que outras empresas fazem em sigilo: o pagamento de resgate para que os hackers não exponham dados roubados ou simplesmente sabotem o funcionamento das vítimas.
É o tipo de crime que, evidentemente, interfere na segurança nacional ao atingir o fornecimento de produtos de primeira necessidade.
Os hackers dos serviços de inteligência da Rússia que tentam interferir no debate digital de eleições e plebiscitos de países ocidentais ganharam notoriedade nos últimos anos. Respondem por nomes como Cozy Bears e outras denominações “fofinhas”, mas são um sério problema de segurança nacional.
A Rússia de Vladimir Putin já vive – e sobrevive – sob o sistema de sanções econômicas decretadas depois da intervenção armada na Ucrânia e da anexação da Crimeia.
Uma porta-voz da Casa Branca disse que, além de oferecer ajuda à JBS e acionar o FBI, a presidência também “entrou em contato” com o governo russo e “passou a mensagem que estados responsáveis não dão porto seguro a criminosos”.
Empresas gigantescas como a Microsoft e a Amazon estão operando em conjunto numa força-tarefa com o FBI e o Centro Nacional de Segurança Cibernética do Reino Unido, insistindo que “é mais do que dinheiro que está em jogo”.
Sem contar que o lucro dos piratas cibernéticos financia outras formas de crime organizado, como tráfico de pessoas e exploração infantil. Em 2020, a força-tarefa registrou três vezes mais crimes cibernéticos do que no ano anterior.
Em outubro passado, houve um ataque de hackers a um alvo inexplicável, a subprefeitura de Hackney, uma das maiores de Londres.
Foram afetados serviços como reparos em habitações subsidiadas para os mais necessitados, pagamentos de benefícios e atendimentos de emergência por causa da pandemia de coronavírus.
“É difícil entender como alguém pode causar tantos prejuízos num momento assim”, lamentou o diretor de TI de Hackney, Rob Miller. Ele calculou que os hackers de Hackney causaram um prejuízo equivalente a dez milhões de dólares.
A JBS disse que o ataque foi detectado no domingo e ontem já estava retomando as operações. Não falou em resgate.
É possível que os piratas estejam dando risada e conferido o lucro, sem um pingo de receio do governo Putin. Os parças se entendem.