Pontes queimadas: Putin tem a palavra final? A história mostra que não
Quando tropas soviéticas invadiram a Checoslováquia, em 1968, o destino do país, como agora o da Ucrânia, parecia selado para sempre

Estava tudo planejado e o desfile de autoridades estrangeiras em Moscou, buscando arrancar alguma concessão de Vladimir Putin, comprovou ser de uma inutilidade quase ridícula, como se uma fileira de cordeiros estivesse tentando convencer o lobo a deixar de ser lobo.
O raivoso e soturno discurso de Putin faz parte de um plano de longo prazo, não de um capricho ditatorial de momento.
Mais perigoso ainda: Putin parece acreditar no que ele próprio diz, deixando entrever sentimentos de ira e humilhação longamente represados. “Paranoico”, na definição de Emmanuel Macron. O presidente francês foi uma das personalidades que passou vexame buscando saídas diplomáticas que Putin já tinha definitivamente fechado.
Como ele preparou longamente os seus movimentos, sabendo que os Estados Unidos e aliados europeus só vão reagir com sanções econômicas, os próximos movimentos também são previsíveis. Por mais que o cordeiro ucraniano proteste, o lobo vai atacar.
A Ucrânia, “um país criado por Lênin”, na definição dada ontem por Putin, está condenada a ser varrida do mapa, num ataque fulminante ou num calculado processo de estrangulamento que torne sua autonomia inviável?
A história mostra que o que parece solidamente definitivo num momento, desmancha-se no ar num outro – para repetir, com motivos justificados apesar do clichê, a frase de Marx que Milan Kundera celebrizou.
A história do país de Kundera, que depois se fracionou em dois, é uma demonstração disso. O que poderia fazer a Checoslováquia quando a União Soviética despachou 500 mil soldados para acabar com uma experiência de reforma por dentro do comunismo.
No dia 20 de agosto do atribulado ano de 1968, a avassaladora força estrangeira tomou o país para acabar com a abertura que se tornou conhecida como a Primavera de Praga. O próprio líder reformista, Alexander Dubcek, pediu para a população não resistir. Foram mortos 137 civis, um número quase incompatível com as dimensões da invasão.
A lei do mais forte parecia escrita para sempre. Como desafiar o incomparável poder da União Soviética?
O “para sempre” durou 21 anos. Entre novembro e dezembro de 1989, praticamente emendando com a queda do Muro de Berlim, a Checoslováquia viveu a Revolução de Veludo, o lindo nome dado ao movimento que acabou pacificamente com o comunismo.
Dois anos depois, desmanchava-se no ar a própria União Soviética.
Como é próprio do livre pensamento e da prática da crítica nas sociedades ocidentais, muito tem sido dito sobre a “culpa” dos Estados Unidos e aliados europeus por tentarem humilhar a Rússia no seu momento de fragilidade pós-império. Existe algo de verdade nisso e muito de exagero.
“Pode ser fácil hoje esquecer que depois que a Rússia emergiu das ruínas da União Soviética, os Estados Unidos e a Europa passaram anos trabalhando para integrá-la numa nova ordem pós-Guerra Fria. Longe da vingança triunfalista (como o Kremlin gostaria que o mundo acreditasse), o Ocidente proporcionou considerável assistência técnica e financeira à Rússia”, escreveram no Politico dois ex-embaixadores americanos, Daniel Fried e Kurt Volker.
Os dois descrevem como Putin recriou algo parecido com o sistema soviético, mas sem a ideologia marxista e com o seu poder pessoal no lugar da antiga cúpula do partido.
Há 22 anos no poder, ele parece inabalável. O discurso de ontem foi um tour de force, um primor de revisionismo histórico, uma especialidade russa. Tem o apoio da opinião pública – em torno de 70% -, uma economia em ordem, um aparato bélico criteriosamente reconstituído e uma arma imbatível de chantagem sobre a Europa, o gás natural. A Ucrânia é uma democracia disfuncional, com níveis enormes de corrupção, poderio militar dez vezes inferior ao do vizinho gigantesco e um ex-comediante como presidente da República.
Só a história diz que talvez a versão final ainda não tenha sido escrita.