Pare de reagir com o fígado, Cameron. Ou caia fora
Primeiro-ministro britânico se enrosca com papéis do Panamá e referendo sobre União Europeia

Muita gente certamente sabe o que é um líder político aparvalhado que, confrontado com uma situação difícil, começa a cerrar os dentes, rugir emoções e fazer cara de bravo. Mas poucos esperavam que David Cameron fosse cair nessa armadilha. O primeiro-ministro britânico enfrenta atualmente dois problemas, um pior que o outro, e está administrando a ansiedade de forma muito ruim. Como vive num sistema parlamentarista, pode ser dispensado numa reviravolta interna de seu partido, o Conservador.
Os problemas dele decorrem de duas situações. Uma é a offshore que o pai do primeiro-ministro, Ian Cameron, tinha nas Bahamas, operada pela hoje mais notória lavanderia de dinheiro do mundo, o escritório Mossack Fonseca, exposto pelos Papéis do Panamá. Outra é a revolta interna dos políticos conservadores que são favoráveis à ruptura com a União Européia, proposta que será submetida a referendo em 23 de junho.
Vamos ao primeiro problema. O falecido pai de Cameron, que administrava dinheiro dos outros e o seu próprio, não fez nada de ilegal, mas as reações do primeiro-ministro ao caso foram desastradas. Disse, inicialmente, que era “assunto particular” responder se sua família ainda tinha dinheiro na offshore. Depois, que não tinha qualquer participação no fundo no exterior.
Cameron admitiu por fim que havia tido uma participação de 30 mil libras no fundo criado pelo pai – pouco mais de 200 mil reais, uma ninharia à qual nem office boys de certas estatais registrariam como dinheiro para valer. Vendeu sua parte antes de se tornar primeiro-ministro, em 2010, e só estava falando no assunto porque não aguentava ver o nome do pai “arrastado na lama”. Foi aí que fez cara de bravo.
Tudo, até agora, perfeitamente legal. Mas politicamente tão prejudicial que até Edward Snowden, o ex-espião americano que vive no conforto da proteção de Vladimir Putin, conclamou os britânicos a ir para a frente da residência dos primeiros-ministros, em Downing Street, e fazer como os islandeses, cujos protestos depois dos Papéis do Panamá provocaram a queda do chefe de governo.
Repetindo: quem disse isso foi Edward Snowden, quase ao mesmo tempo em que Putin ironizava os documentos, onde amigos de infância dele aparecem com 2 bilhões de dólares, atribuindo tudo a uma “conspiração ocidental”. Os russos nunca foram conhecidos por dar proteção grátis.
Para piorar a situação de Cameron, ele resolveu muito antes de que o caso viesse à tona dar uma lustrada em sua imagem de riquinho e fazer campanha contra os artifícios fiscais usados por grandes empresas e altos milionários para pagar poucos nenhum imposto. Ah, as ironias da política. No mês que vem Cameron vai presidir uma conferência internacional sobre o tema, se ainda estiver com a cabeça de fora.
O que nos leva ao segundo problema dele. A sobrevivência de Cameron depende não apenas do resultado do referendo sobre a União Europeia como da maneira que administra a relação com os conservadores, inclusive ministros de seu governo, favoráveis ao voto Out em lugar do In.
Além de não cumprir a promessa de não-interferência nas opiniões dos eurocéticos, Cameron os enfureceu ao usar dinheiro do estado, 9 milhões de livras, para fazer um livreto a ser enviado a todos os domicílios britânicos, defendendo o voto pela permanência.
Imaginem um político eleito que não cumpre promessas e usa recursos públicos para defender suas causas. Deve ser uma coisa horrorosa. Mas, agora sem ironias, as duas questões que assombram Cameron têm consequências potencialmente monumentais. A saída da Grã-Bretanha pode abalar a economia mundial, que vive nervosa desde a crise de 2008 – embora os eurocéticos apontem, com razão, os exageros do primeiro-ministro sobre as desvantagens econômicas internas.
No momento, a média das últimas seis pesquisas dá exatamente 50% dos votos para cada lado.
Mudar as regras sobre os paraísos fiscais também não pode acontecer como um ato de volição. Num artigo para o Times de Londres, Ed Conway, jornalista especializado em economia, explica que esses paraísos não são apenas um luxo a mais criado para os muito ricos estacionarem seu dinheiro, mas estão na própria base do sistema financeiro internacional.
Por causa de seus territórios ultramarinos, especialmente no Caribe, a Inglaterra desfruta de vantagens adicionais como centro financeiro. Hoje, 16,5% do capital financeiro internacional está no Reino Unido, contra 11% nos Estados Unidos. Quando os territórios no ultramar são incluídos, a participação britânica sobe para 22,6%.
Cameron tem cara de quem conseguiria desmontar um sistema dessas proporções ou de quem estava fazendo jogo de cena para inglês ver?