O roubo de cem milhões de dólares no Louvre: descaso e incompetência
Fica cada vez mais patente a extrema negligência das autoridades que permitiu a quatro ladrões se safarem com um pedaço da história da França
Câmeras que deveriam filmar não registraram nada, alarmes que deveriam tocar ficaram em silêncio, vidros blindados que a tudo resistiriam foram serrados como gelatina, guardas que deveriam ver o absurdo de um caminhão com uma escada mecânica parando junto ao maior museu do mundo não desconfiaram de nada. O escândalo do roubo de oito jóias da realeza, avaliadas materialmente em 102 milhões de dólares, mas com inestimável valor histórico, fica cada vez pior.
A diretora-presidente Laurence des Cars apresentou aquele pedido de demissão que é feito para ser rejeitado – pois se for aceito, terá que continuar subindo a escada e chegar, no mínimo, à ministra da Cultura, Rachida Dati, e provavelmente ao primeiro-ministro, cujo nome é algo desconhecido devido ao constante troca-troca.
A diretora e a ministra mostram documentos nos quais pedem verbas para a segurança, mas deveriam no mínimo ter se amarrado aos pés da Vitória de Samotrácia para chamar a atenção da opinião pública se a situação era tão periclitante quanto se revelou. Falta de dinheiro não pode ser desculpa: no começo do ano, o presidente Emmanuel Macron, se colocou diante da Monalisa e anunciou um plano de 550 milhões de euros para renovar o museu que recebe mais de dez milhões de pessoas por ano, com a construção de salas subterrâneas e uma nova entrada monumental, embora sem comparação com a pirâmide de vidro, a obra que I. M. Pai, o arquiteto americano nascido na China, fez por encomenda de François Mitterrand.
Como tudo em que Macron põe a mão, a coisa saiu terrivelmente errada na manhã do último dia 19, quando três ladrões num caminhão com uma escada mecânica e um quarto de moto pararam o veículo junto à prodigiosa Galeria de Apolo, colocaram cones de trânsito interrompido e, eficientemente, subiram até a porta-janela do primeiro andar, arrombaram-na, entraram no grande salão reconstruído em estilo prodigiosamente suntuoso por Luís XIV, o rei sol (daí a referência ao deus grego), cortaram com uma serra circular, provavelmente com discos de diamante para cortar vidro, expositores que deveriam ser inexpugnáveis e foram embora em menos de sete minutos.
O PRÍNCIPE-PRESIDENTE
As poucas imagens registradas do roubo espetacular foram feitas pelos primeiros visitantes que chegavam ao museu – as câmeras de segurança estavam todas mal posicionadas ou não funcionaram.
Na rápida fuga, feita pela mesma escada mecânica e depois em duas motos, deixaram cair uma das peças roubadas: a coroa da imperatriz Eugênia, a aristocrata espanhola que se casou por amor com Charles-Louis Napoléon Bonaparte, o presidente e depois imperador da França, uma combinação estranha mas que durou um longo período que foi de 1848 a 1870. Com as primeiras notícias, muitas pessoas acharam que as jóias pertenciam ao Napoleão original. Napoleão III era seu sobrinho, fez um governo reformista, restaurou os mais importantes monumentos históricos, inclusive Notre Dame e a maravilhosa vila medieval de Carcassone, e deu a Paris a feição que hoje conhecemos.
Foi sobre ele que Marx disse a famosa frase da história que acontece duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa. Mas, como sempre, existe um movimento revisionista que procura dar mais valor ao príncipe-presidente, como se denominava.
A coroa da imperatriz não é uma das jóias mais bonitas, com estranhas águias de asas erguidas, ladeadas por palmeiras estilizadas, formando os arcos unidos no topo, encimados por uma orbe e uma cruz de diamantes, o símbolo máximo da realeza. Mas tem um valor histórico maior ainda do que o intrínseco porque reproduz em escala menor a jóia usada na coroação por seu marido.
PRESENTE DE CASAMENTO
Ela é a mais concreta referéncia à coroa do imperador Napoleão III , que sumiu para sempre – uma das muitas jóias inestimáveis que tiveram esse destino na acidentada história francesa, com revoluções radicais e mudanças drásticas de regime.
Depois da queda de Napoleão III, por exemplo as jóias da Coroa foram vendidas em leilão pelo novo regime da Terceira República, uma bobagem inominável que colecionadores franceses começaram quase que imediatamente a tentar reparar, recomprando as preciosidades para serem exibidas no Louvre como um retrato insubstituível da história da França.
Entre as peças recuperadas e agora roubadas está o diadema de pérolas de Eugênia, uma tiara – como dizem os ingleses, propagando o termo por causa da projeção da monarquia britânica – relativamente modesta, com 1 988 diamantes e 212 pérolas, das quais sete grandes gemas em formato de gota que encimam a peça (também por causa da monarquia inglesa, sabemos que coroas são apenas os objetos usados em grandes cerimônias de Estado).
Também foi de Eugênia um grande broche em formato de laço, chamado em francês de “noeud de corset”, para ser usado na frente dos corpetes dos vestidos de festa, entre a base dos seios.
Provavelmente a jóia mais bonita capturada pelos larápios é o colar de esmeraldas que o Napoleão original mandou fazer como presente de casamento com a princesa austríaca Maria Luísa, com quem se uniu por necessidade de ter um herdeiro e fazer uma aliança política vital, embora continuasse loucamente apaixonado e sexualmente obcecado pela primeira mulher, Josefina. Agindo na correria, os ladrões conseguiram levar apenas um dos brincos do conjunto de esmeraldas, que tem também um grande broche.
A QUADRILHA DOS QUARENTA LADRÕES
O mais espantoso roubo de jóias da Coroa aconteceu em setembro de 1792, quando o notório criminoso Paul Miette recrutou uma quadrilha de de mais de quarenta ladrões para, durante cinco dias, roubar 80% das preciosidades da realeza, abrigadas no prédio chamado de Guarda Móveis, na Praça da Concórdia (na época, praça da guilhotina onde aconteciam as principais execuções e onde no ano seguinte seria decapitado o rei Luís XVI).
Os ladrões escalaram as paredes do prédio com cordas, mostrando que pouco há de novo sob o sol, principalmente no ramo da criminalidade – cinco deles depois seriam guilhotinados, mas Miette escapou, despertando todo tipo de teoria conspiratória sobre proteção de altos escalões.
O governo revolucionário havia feito um levantamento das jóias da Coroa para passar uma imagem de transparência. Constavam do inventário 9 547 diamantes, 506 pérolas, 230 rubis e espinélios, 150 esmeraldas, 71 topázios e 35 safiras.
A maior parte das jóias roubadas foi recuperada em três anos, a maioria na Inglaterra, inclusive diamantes legendários como o Sancy, uma pedra em fulgurantes tons de amarelo claro e 55 quilates, e o Regente (fabulosa gema de 140 quilates transformada em símbolo da realeza, reaparecendo durante o processo do líder revolucionário Danton, suspeito de participação no roubo e guilhotinado em 1794, por “conspiração e venalidade”, mas na verdade por excesso de moderação política quando a Revolução já mergulhava no vórtice de extrema violência que a exauriria).
Jamais foi recuperado o mais célebre dos diamantes roubados, o Azul da França, uma pedra de 69 quilates e incomparável tonalidade de azul forte usada por Luís XIV na sua mais preciosa condecoração, feita com raros diamantes coloridos.
A BEM AMADA DE GETÚLIO
O diamante de origem indiana – Brasil, África, Sibéria e Austrália ainda não tinham suas jazidas exploradas quando ele aflorou – foi relapidado depois do roubo e acabou ganhando, muitos anos e aventuras depois, o sobrenome do seu comprador inglês, Henry Philip Hope.
O diamante Hope hoje pode ser visto no Smithsonian, em Washington, onde é a segunda peça de um museu mais visitada do mundo, depois da Monalisa.
Comprar jóias que haviam pertencido a cofres reais virou uma mania de milionários americanos. Aderiu a ela a linda e elegante Aimée de Heeren, brasileira que usava o sobrenome do marido, dono da primeira grande loja de departamentos dos Estados Unidos. Aimée comprou – ou foi presenteada por amantes ricos – muitas das peças da imperatriz Eugênia, depois readquiridas pela França.
Ela era tão discreta que conseguiu ter um caso com Getúlio Vargas, entre 1937 e 1938, sem que isso virasse uma fofoca nacional. Ele a chamava de Bem Amada, referência a seu nome francês. A seu biógrafo, Delmo Moreira, explicou por que não colaboraria com o livro sobre sua trajetória única: “As pessoas só se interessam por crime e sexo. Crime não tem na minha vida e de sexo eu não vou falar”.
Todo muito está falando sobre o crime do Louvre – e alguma história ligada a sexo possivelmente aparecerá. Também dá para ter uma certeza razoável de que os ladrões serão pegos e a França inteira – além de todos os interessados do mundo em sua riquíssima e acidentada história – deseja que eles não tenham feito o roubo pensando em derreter os metais preciosos e vender as pedras desmontadas separadamente, avaliadas em 88 milhões de euros, ou 102 milhões de dólares – sem contar o valor histórico inestimável.
INTENSO PRAZER DA POSSE
Inteiras, as jóias não têm compradores, mesmo que muitos fantasiem sobre milionários chineses ou russos que desejem esconder as preciosidades em seus porões blindados para desfrutar do intenso prazer que a posse de objetos incomparáveis provoca, mesmo que não possam se pavonear a respeito.
As jóias voltarão ao Louvre? Forças policiais da França, obviamente sob intensa pressão, e de todo o mundo estão trabalhando para que isso aconteça. Os responsáveis pela grave negligência que facilitou tanto a vida dos ladrões responderão por seus erros? Ah, na doce França isso é pouco provável, mas não impossível, no caso de um futuro governo – de direita lepenista – que queira desmoralizar Emmanuel Macron e outras autoridades ligadas a ele.
Afinal, é por ser de direita gaullista que Nicolas Sarkozy começou a cumprir pena, encarcerado, por financiamento ilegal de campanha, um fato inédito na França (a prisão fechada, não o financiamento). Suas relações com Muamar Kadafi foram cabulosas, mas não havia provas que levassem a sua condenação. Isto é, se não houvesse juízes loucos para mandá-lo à cadeia, a guilhotina moderna, embora existam esquerdistas que continuem a louvar o método tradicional. Quem prefere se envolver com o lado menos cruento da história pode ver a exposição sobre Maria Antonieta no Victoria and Albert de Londres, incluindo um fabuloso colar de vinte diamantes maiores do que ovos de codorna, uma das poucas jóias sobreviventes.
Ao subir no patíbulo, a rainha fashion perdeu um sapato, desequilibrou-se e pisou com o sapato que restava no pé do grande carrasco de Paris, Henri Sanson. Disse, segundo a lenda, tão boa que se perpetuou: “Eu peço desculpas, senhor, não fiz de propósito”. Talvez só por isso tenha feito alguma coisa por merecer todas as fabulosas joias que teve – e perdeu no rio revolucionário de sangue,
Ah, sim, o intendente do Guarda Móveis, onde as jóias da Coroa foram roubadas durante a Revolução, escreveu aos superiores pedindo reforço na segurança. Plus ça change…
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