O que vai na cabeça do eleitor americano? Um passo para lá, dois para cá
Extremismos, dos dois lados, são rejeitados e a maior conta deve ser paga, segundo a projeções, pela presidente da Câmara, Nancy Pelosi
Nancy Pelosi foi uma extraordinária presidente da Câmara, impondo com segurança a disciplina partidária às diferentes alas do Partido Democrático. Na maioria ou na minoria, ao longo de duas décadas, lá estava ela, com terninhos coloridos, salto alto, as pálpebras mais esticadas que uma senhora hoje com 82 anos pode comprar e uma defesa inabalável das necessidades do partido.
Em que momento ela tremeu a mão que bate o martelo de speaker, na nomenclatura americana? Em que momento abriu caminho para que se esgueirassem os votos que, segundo as projeções, derrubam a maioria democrata na Câmara?
Que o partido do presidente em exercício perde as eleições legislativas e para governadores no “meio do mandato” (presidencial) é um fato da vida. Perder por muito pouco só aumenta a ressaca, ao contrário dos que propalam a tese de um governo Biden vitorioso.
Não se pode, evidentemente, individualizar a culpa. Mas políticos experientíssimos, como Pelosi e o próprio Joe Biden, de 79 anos, se deixaram levar por um fenômeno presente em outros partidos: a ala mais militante fala mais alto, jovens idealistas influenciam os veteranos e estes acabam fazendo concessões que os tiram do centro onde sempre estiveram.
Começam a falar a linguagem “woke”, progressista, conscientizada.
E perdem o contato com a base. Também perdem eleições.
Um artigo publicado na Newsweek pelos pesquisadores Douglas Schoen e Robert Cohen retrata as categorias dominantes de eleitores para mostrar “como o Partido Democrata perdeu a classe média” – essa, entendida no sentido americano, como a maioria da população que não tem diploma universitário e mantém um padrão de vida equivalente, no passado, ao sonho americano, com casa própria (financiada), dois carros na garagem, mesa bem provida e um duro danado para segurar tudo isso.
Segundo a pesquisa que analisou valores e convicções de 900 americanos, quase 70% da população pode ser encaixada no que os autores chamam genericamente de populistas. Suas preocupações maiores: aumento de preços, risco de recessão e criminalidade.
Desse grupo, 34% são chamados pelos autores de populistas puro sangue. Acreditam no excepcionalismo americano, em direitos dados por Deus, no poder da iniciativa individual e no conceito de que é possível melhorar de vida através do trabalho duro. Veem três obstáculos nesse percurso: economia fraca, aumento da criminalidade e crise migratória na fronteira. Cerca de 60% identificam-se como republicanos. Só 25% votaram em Biden.
O outro grupo da categoria populista (também poderiam ser qualificados de americanistas) abarca 35% do eleitorado. São menos identificados com a ideologia fundadora do país, mas igualmente preocupados com os problemas acima mencionados. Nessa faixa, 45% foram eleitores de Biden.
A categoria restante é a menor, 31%. São mais jovens, com níveis de instrução mais alto e maior participação de mulheres. É para ela que Biden parece governar. As preocupações com o meio-ambiente estão no topo de uma lista de dez temas em que a criminalidade aparece em último lugar. Favorecem fronteiras abertas e fontes de energia limpa, não o gás e o petróleo que garantem a independência energética dos Estados Unidos. Aliás, rejeitam a noção de excepcionalidade do país.
Nessa faixa, não existem republicanos.
O recado dado pelas urnas ontem foi ambíguo: só com a turma “progressista”, não se consolidam eleições. Em contrapartida, também não enganam o eleitorado candidatos republicanos fracos, como Herschel Walkers, escolhido na Georgia por ser um ex-jogador famoso de futebol americano e ter a cor certa de pele para enfrentar um adversário negro, tendo acabado bombardeado por denúncias de abortos de ex-namoradas.
Outra coisa que o povo, na maioria, não quer saber: quem fica martelando que Donald Trump foi roubado em 2020. Keri Lake, tratada como estrela ascendente do Partido Republicano e potencial futura candidata à Presidência, não correspondeu às expectativas e perdeu consistentemente a eleição para o governo do Arizona.
Não houve o tsunami republicano que se antecipava, muito longe disso.
Se os dois partidos tivessem líderes sérios, ambos estariam agora fazendo autocrítica. O Democrata por se distanciar do centro e fazer de conta que problemas existenciais como a inflação podem ser colocados em segundo plano. O Republicano por não saber tirar proveito, nas palavras do comentarista Mark Thiesen, “da pior inflação em quatro décadas, do pior colapso do salário real em quarenta anos, da pior onda de criminalidade desde os anos noventa e da pior crise fronteiriça da história americana”.
Donald Trump saiu enfraquecido com a derrocada de candidatos alinhados ideologicamente com ele. Pior ainda, seu maior adversário interno, Ron DeSantis, o governador da Flórida, saiu coberto de votos – e de glória, com uma margem de 19 pontos de vantagem. Não adiantou Trump fazer piadinha e chamá-lo de DeSantimônio.
E Nancy Pelosi, vai perder a liderança na Câmara e talvez no partido?
A veterana democrata se afastou da arrancada final da campanha por causa de um episódio abominável acontecido em sua própria casa, em São Francisco. Desafiando todo o esquema de segurança que cerca a segunda pessoa na linha de sucessão, depois da vice-presidente Kamala Harris, um desequilibrado deu uma martelada na cabeça do marido dela, Paul Pelosi, quando a polícia já estava na porta de entrada.
David Depape, saído dos ambientes mais alternativos e transformado, aparentemente, num seguidor de teorias alucinatórias de ultradireita, queria sequestrar Nancy e “quebrar seus joelhos”.
Nancy Pelosi estava em sua casa em Washington. A essa altura da vida, ela não precisa provar mais nada. Pode se aposentar e seguir de perto a recuperação do marido. Mas também pode achar que a eleição apertada foi um atestado de confiança. Gás ela prova constantemente que tem.