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O guardião da fé: por que arcebispo escreveria um tratado sobre beijos?

Francisco nomeou um conterrâneo argentino que compra briga por causa de livro com elogios eróticos ao encontro de bocas apaixonadas

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 14 Maio 2024, 00h09 - Publicado em 21 jul 2023, 10h33

“Foi coisa de uma cura de província”, diz, com falsa modéstia, dom Víctor Manuel Fernández, o arcebispo argentino que está causando um rebuliço na Igreja desde que foi nomeado pelo papa Francisco para o comando do Dicastério da Doutrina da Fé. Ele terá a missão de preservar a doutrina revelada por Deus nos livros sagrados, inclusive pelas palavras de seu próprio Filho, segundo acreditam os fieis.

Não é preciso ser da corrente conservadora nem sequer católico praticante para se perguntar por que o papa argentino escolheu um religioso tão esquisito, autor de um livro intitulado Cura-me com sua Boca. A Arte de Beijar, cheio de elegias aos beijos apaixonados num tom vagamente parecido com o de um Neruda menos poeticamente privilegiado.

“Tucho, o beijoqueiro”, ironizam adversários conservadores, usando o apelido pelo qual o arcebispo é amplamente conhecido. Outros, falam em Deep Throat, evocando o clássico pornográfico para trechos como “o beijo penetrativo é quando você suga e chupa com os lábios. O beijo penetrativo é quando você enfia a língua. Cuidado com os dentes”.

Há, como se vê, amplo espaço para ironias. O livro data de 1995 e “não foi escrito com base na minha própria experiência”, esclarece dom Tucho — ainda bem que ele deixa um espaço para o celibato —, embora o entusiasmo com o elogio do beijo pareça indicar algum conhecimento de causa.

“O beijo é amor feito carne, o ponto onde confluem todas as características do amor humano: ternura, paixão, alegria, admiração, doçura, força, descanso, descarrego, entrega, comunicação”.

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Dá vontade de sair beijando muito, mas os especialistas enxergam algo de um dos polêmicos textos de Francisco, o Amoris Laetitia, no elogio ao beijo e em detalhes como “se pode fazer sexo, aliviar instintos e satisfazer uma necessidade, mas se não há beijos de verdade — profundos, ternos e frequentes — é porque o amor já não existe ou está moribundo”.

Curiosamente, também há algo do hábito bem sacerdotal dos sermões: beijo não é uma prática que precisa ser incentivada. Ou rola ou não. Se não for espontâneo, todo o resto fica postiço. Talvez a falta de prática de Tucho no assunto o tenha levado a “promover” algo que só vale quando é natural — existe algo mais falso do que um beijo planejado, construído ou antieroticamente encenado com base nos conselhos de um padre?

A obra “não contem nenhuma heresia ou erro” e as críticas partem dos “setores ultraconservadores que odeiam o papa argentino”, defende-se Tucho. Ele também diz que num dos trechos mais entusiasmados do livro — “Como Deus foi tão impiedoso para dar-te esta boca? Não há quem resista, bruxa, esconda-a” — a palavra original em espanhol bruja foi perversamente traduzida com um sinônimo chulo para prostituta.

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Curiosidade: quem usa palavras chulas no discurso habitam é o arcebispo, acostumado a falar no estilo popular argentino, cheio de palavrões.

A influência do arcebispo é vista não apenas no elogio ao encontro sexual conjugal, mas em trechos da exortação apostólica Amoris Laetitia que abrem o sacramento da comunhão para casais que tenham tido casamentos anteriores. Parece uma bobagem, à luz da sociedade contemporânea, mas os tradicionalistas se horrorizam com o que consideram uma sabotagem a um sacramento que deveria ser intocável ao estabelecer, diante de Deus, a indissolubilidade dos laços matrimoniais, exceto no casos de dissolução carimbados pela Igreja.

Como Francisco, dom Tucho é cheio de ressentimentos — poucas coisas se comparam, em animosidade, aos embates entre religiosos de tendências diferentes. Faz parte, com alacridade, do grande dilema da Igreja: modernizar-se em nome da retenção dos fieis ou manter a tradição e os rituais tão entranhados na psique coletiva do catolicismo?

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Nenhuma das coisas parece estar funcionando, mas o papa argentino, com 86 anos e amplo conhecimento da própria finitude, está batendo o pé e aumentando as intervenções que promovem a versão progressista.

Mas poucas coisas se comparam a nomear o arcebispo da ala mais à esquerda para um cargo que já foi do papa Benedito XVI e de outro alemão, dom Gerhard Müller, um dos mais declarados críticos de Francisco.

“A decisão de quem se tornará prefeito da principal congregação que assiste o Pontífice Romano em seu magistério universal pertence apenas ao Santo Padre”, disse o cardeal Müller. “Isso não exclui a preocupação de muitos bispos, padres e fieis de todo mundo. Eles têm o direito de se expressar livremente”.

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“A obediência religiosa devida por todos os católicos ao episcopado universal, e especialmente ao papa, se refere apenas às verdades sobrenaturais da doutrina da fé e da moral”.

Dom Tucho diz que é doutor em teologia e seu livro de “cura de província” foi escrito há 37 anos.

Estaria o papa argentino querendo abrir caminho a um sucessor? A um herdeiro de São Pedro que ficou conhecido por um tratado beijoqueiro? No National Catholic Reporter, escreveu Richard Gaillardetz: a nomeação de dom Tucho é a mais importante, no nível hierárquico da Igreja, dos dez anos de pontificado de Francisco. Ele atribuiu as críticas ao “estilo de teologia mais pastoral” do arcebispo – todo mundo sabe o que significa isso.

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“Estejam alertas e vigiem. O vosso inimigo anda ao redor como leão, rugindo e procurando a quem possa devorar”, disse a rocha sobre a qual foi erguida a Igreja.

Muitos lados nessa guerra interna da Igreja certamente pensam isso sobre o campo oposto.

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