Nudez castigada: professora francesa ameaçada por mostrar quadro
"Racismo" e "provocação aos alunos muçulmanos" são acusações lançadas à mulher não identificada por causa de pintura do século XVII

Num país onde dois professores já foram assassinados por jovens radicais muçulmanos, o caso ocorrido numa escola da cidadezinha de Issou tem que ser levado a sério.
Uma professora de francês, que falava sobre história da arte, foi ameaçada por mostrar um quadro pintado entre 1603 e 1606 por Giuseppe Cesari, mostrando um mito grego famoso em que a deusa Diana, originalmente Artemis, transforma em cervo um caçador que a viu tomar banho num riacho em companhia de quatro ninfas. O homem metamorfoseado, Acteon, acaba morto pelos cães de seus próprios companheiros de caçada.
Os mitos gregos (mitos para nós, para eles eram religião e história) foram um dos maiores pretextos para que os pintores renascentistas retratassem mulheres nuas, ainda um tabu na época. O quadro mostrando Diana e Acteon é no estilo maneirista, identificado na postura algo instável dos corpos retorcidos e voluptuosos da deusa da caça e das quatro ninfas que a acompanham.
O quadro está no Louvre, mas a realidade fora do museu não tem nada de bonita. Assim descreveu o Journal du Dimanche: “Na saída da aula, alguns alunos espalharam boatos de que a professora tinha propósitos racistas e tentou constranger alunos de religião muçulmana fazendo perguntas a eles sobre a pintura. Um pai de aluno mandou um e-mail à diretoria acusando a professora de ter impedido seu filho de se expressar na classe”.
Outra professora disse que a “acusada” não fez nada do que os alunos estão dizendo, mas “os pais preferem não acreditar em nós”.
PROFESSOR DECAPITADO
“Ficamos com muito medo por nossa colega, isso nos fez lembrar Samuel Paty”, disse outra professora da escola Jacques-Cartier.
É impossível não lembrar do caso de Paty, o professor decapitado ao sair da escola por Abdoullakh Anzorov, checheno de 18 anos cuja família foi recebida como asilada política na França quando ele era criança. Teoricamente, alunos e pais de alunos muçulmanos protestavam há uma semana por uma aula de educação moral e cívica em que ele havia mostrado duas caricaturas do profeta Maomé publicadas pelo jornal satírico Charlie Hebdo, como mote para discutir a liberdade de expressão.
O jornal foi alvo do ataque de 2015 dos irmãos islamistas Said e Cherif Kouachi, que mataram doze pessoas durante uma reunião de pauta da redação. Além do horror despertado, o caso se transformou em debate sobre a liberdade de expressão no que tem, geralmente, de mais complicado, a satirização de figuras religiosas.
O assassinato brutal do professor Paty , em 2020, continua a ter desdobramentos. Na semana passada, foram condenados seis adolescentes, entre os quais uma menina que havia dito que o o professor tinha pedido a alunos muçulmanos que saíssem da classe quando foi mostrar as caricaturas. Tudo inventado: ela havia faltado naquele dia.
Todas as sentenças foram suspensas ou comutadas, aumentando a impressão de muitos franceses de que o extremismo islamista não é devidamente investigado e punido. Ou talvez, pior ainda, que se disseminou de tal forma entre os 10% da população de religião muçulmana – a maioria, obviamente, seguidora da lei – que é impossível para os órgãos de segurança policiarem todos os radicais.
Foi um desses radicais fichados que matou, em outubro, outro professor, Dominique Bernard, esfaqueado no pátio da escola de Arras aos gritos de “Allahu Akbar” por um ex-aluno da escola secundária.
LEALDADE A ISRAEL
A questão atinge todos os países europeus mais procurados por emigrantes, legais ou ilegais, vindos do norte da África e outras regiões de maioria muçulmana. As leis da União Europeia, produto de uma época diferente, quando abrir as portas a exilados ou trabalhadores estrangeiros parecia uma coisa necessária e eticamente imperativa, são consideradas as responsáveis indiretas pela ascensão da extrema direita ou direita dura em matéria de imigração.
Há pesquisas desse ano indicando que Marine Le Pen, o nome mais conhecido dessa linha dura, ganharia por 55% a eleição presidencial se fosse reproduzido seu confronto de 2022 com Emmanuel Macron. Um partido relativamente novo, a Alternativa para a Alemanha, é hoje o segundo mais apoiado do país, com 20% das preferências. Só não integrará a próxima coalizão de governo porque os demais partidos alemães se recusam a uma aliança com ele.
É claro que os políticos entendem as mensagens. Macron está tentando aprovar hum novo pacote de leis de imigração, enfrentando oposição da direita e da esquerda. O primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz, aprovou medidas que facilitam a extradição de clandestinos.
O estado da Saxônia-Anhalt foi mais longe e estabeleceu que quem pedir a cidadania alemã em seus domínios deve assinar uma declaração que “reconhece o direito de Israel a existir e condena quaisquer esforços contra esse direito”. A ministra do Interior do estado, Tamara Zieschang, argumentou que, pelas conhecidas e trágicas razões históricas, a própria “razão de ser” da Alemanha está conectada à existência de Israel.
Obviamente, é uma reação às manifestações de ódio a Israel e aos judeus desencadeadas pela guerra de Gaza e de legalidade discutível. Mas demonstra como é complexa a questão do radicalismo islâmico na Europa. E por que uma professora francesa passou a ter uma vida de intimidação e medo por ter mostrado um quadro pintado há mais de 400 anos.