As campanhas presidenciais americanas são feitas com uma violência verbal que chega a assustar. Não existe uma “autoridade” eleitoral para dizer o que os coitadinhos dos eleitores podem e o que não podem ouvir. Eventualmente, canais de televisão rejeitam propagandas muito agressivas — geralmente de Donald Trump. A Fox News não aceitou que fosse divulgado, durante uma entrevista de Kamala Harris, um anúncio do filme O Aprendiz, considerado por quem tem cabeça mais fria como uma bomba destinada a detonar o candidato republicano. Cabeça fria é o que mais falta nos momentos incandescentes que precedem as eleições, arrastando na enxurrada até publicações respeitáveis. Quem quer uma visão pelo menos minimamente equilibrada precisa ter uma certa cautela. Trump não é um fascista que vai encarcerar dissidentes por crimes de opinião — em seus quatro anos como presidente, não houve nada parecido. O que não impediu uma jornalista e historiadora sofisticada como Anne Applebaum de escrever um artigo com o seguinte título: “Trump está falando como Hitler, Stálin e Mussolini”. É, em resumo, ridículo. Da mesma forma, Harris não vai impor o comunismo, mesmo tendo um pai que segue a tribo acadêmica dos economistas marxistas. Ela gosta de roupas e joias caras, só usa sapatos de salto da grife Manolo Blahnik (começando em 800 dólares), transita com o marido no topo das elites e suas ideias de esquerda festiva, caso seja eleita, serão contidas por dois mecanismos: a supervisão do Poder Legislativo e o “sistema” — entre aspas para significar todas as múltiplas estruturas do poder permanente, incluindo os muito ricos e influentes.
“Princípios democráticos sólidos e juízes que veneram os autos não permitiriam abusos”
A mais agressiva propaganda política americana foi criada em 1988 com base em fatos reais: o filmete de um grupo favorável ao republicano George Bush pai que mostrava um criminoso chamado Willie Horton, condenado à prisão perpétua por matar num assalto um frentista de 17 anos, mas beneficiado por um programa de saidinhas promovido pelo adversário democrata, Michael Dukakis, como governador de Massachusetts. Numa dessas saídas, Horton invadiu uma casa, esfaqueou o morador e estuprou a companheira dele duas vezes. A propaganda mostrava esses fatos e uma foto de Horton, denunciada como “um estereótipo do criminoso negro”. Os eleitores preferiram ver no episódio um caso de leniência judicial absurda e Bush pai se tornou o primeiro vice eleito presidente desde Martin van Buren, em 1836, um feito que Harris pretende repetir.
Muitos dos maiores absurdos que estão sendo ditos nesta largada final são colocados na conta da “síndrome de distúrbio antitrumpista”, uma expressão criada para ironizar os que acham os muitos defeitos de Donald Trump não suficientes e inventam outros, aproveitando escorregões que são intencionalmente distorcidos, como quando ele disse que não seria um ditador, “exceto pelo primeiro dia”. Na verdade, foi Trump o maior alvo da instrumentalização da Justiça, através de processos e até crimes inventados. Uma operação espalhafatosa do FBI redundou em fotos — “mexidas” — de documentos sigilosos desviados da Presidência, mas o caso desmoronou na Justiça. Ele gostaria de se vingar se fosse eleito? Muito provavelmente. Conseguiria fazer isso? De jeito nenhum. Princípios democráticos sólidos e juízes que veneram os autos não permitiriam abusos. Ainda não inventaram nada menos ruim do que isso.
Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916