Não entendeu nada do que acontece na Coreia do Sul? Não está sozinho
Sem ter sustentação política nem militar, ou crise que justifique o excesso, o presidente Yoon Suk Yeol só produz caos com lei marcial
Quantos tanques tem Yoon Suk-yeol? Essa é a pergunta principal. Considerando-se que a resposta é “nenhum”, justifica-se o espanto generalizado desencadeado pelo presidente da Coreia do Sul ao decretar lei marcial, com ampla suspensão de garantias e direitos só concebível se existisse uma crise gravíssima — entendendo-se por isso um ataque ou uma invasão da Coreia do Norte, a permanente ameaça que perpassa a vida do país desde 1953, quando o estado de guerra entre as duas metades da península foi suspenso.
A medida extrema foi cancelada pelos 190 deputados — de um total de 300 — presentes na Assembleia Nacional. Todos votaram contra, inclusive parlamentares do próprio partido do presidente, e os soldados que cercavam a sede do legislativo se retiraram, evitando o pior. Tinham chegado de helicóptero e entrado num certo confronto com manifestantes, mas recuaram.
Yoon tem minoria na Assembleia e está com o prestígio em baixa. Tendo feito carreira como promotor implacável na perseguição a corruptos, uma categoria em eterna expansão, a ponto de, a certa altura, levar para a cadeia ou para o banco dos réus praticamente todos os ex-presidentes, ele próprio enfrentava acusações contra a esposa.
A lânguida Kim Keon-hee ficou conhecida por dois fatores. Tem 52 anos, mas aparenta 22 — um atestado vivo aos cosméticos que fazem a fama da Coreia do Sul. E apareceu recebendo uma bolsa Dior de presente de um interessado em contatos de cúpula. Foi exonerada na Justiça, mas o caso colou mais do que aquelas músicas do K-pop. “Ela deveria ter se comportado melhor”, reconheceu o presidente, numa censura pública à primeira-dama.
A política sul-coreana é uma atividade de risco, e Yoon enfrentava as desvantagens de não ter maioria no Parlamento. Seu orçamento para 2025 havia sido rejeitado. Algumas propostas, como a de aumentar para até 69 horas a carga semanal de trabalho, soavam simplesmente absurdas — e como tal foram tratadas pelas gerações mais jovens, menos dispostas aos sacrifícios que transformaram a Coreia do Sul de país destruído pela guerra em potência exportadora, com invejáveis 33.000 dólares de renda per capita, mas também um fenômeno chamado “gwarosa”, a morte por excesso de trabalho, com paralelos apenas no Japão.
Jogada insensata
O que deu na cabeça do presidente? Um chefe do Executivo que não consegue nem aprovar o orçamento não tem condições de implantar medidas drásticas como fechamento da Assembleia Nacional, suspensão de garantias constitucionais, censura à imprensa e outras exceções justificáveis em situações de grave emergência nacional.
Com a jogada insensata, Yoon criou instabilidade e exacerbou uma crise política que fazia parte do previsível. A Coreia do Sul tinha deixado a imprevisibilidade no passado e estabilizado o sistema democrático, superando traumas extremos como golpes sucessivos, repressão e erupções quase inexplicáveis de violência, como o assassinato do presidente Park Chung-hee.
Park era um ditador tradicional, com carreira militar para sustentar as medidas de exceção. Foi morto em 1979, durante um jantar, pelo diretor do serviço de inteligência (chamado KCIA) e chefe da segurança presidencial, num dos mais bizarros incidentes da política mundial. As motivações do assassino, condenado à morte na forca, nunca ficaram claras.
A filha do assassinado, Park Geun-hye, foi eleita presidente em 2013, mas sofreu impeachment, foi afastada do cargo, presa, julgada e condenada a 24 anos de cadeia por abuso de poder, corrupção passiva, coação e vazamento de segredos de Estado. Recebeu um indulto presidencial e foi convidada para a posse de Yoon Suk-yeol.
Os precedentes não apontam para um futuro tranquilo para ele. Kim Jong-un deve estar dando risada do lado norte da fronteira com os anacrônicos problemas que seu inimigo juramentado criou para si mesmo.