Malditos sejam: explodir catedral e ameaçar Polônia são táticas de terror
Disparar um míssil deliberadamente para destruir igreja em Odessa é uma das muitas barbáries de um Putin cada vez mais celerado

Em 1936, o regime stalinista mandou demolir a Catedral da Transfiguração, em Odessa, tal como aconteceu com milhares de outras igrejas cristãs ortodoxas. Era o auge da campanha contra a igreja, o clero e o próprio conceito de religião, considerado um obstáculo ao homem novo que o regime queria construir num futuro comunista onde não havia espaço para a espiritualidade.
Foi difícil arrancar a religião da alma russa, tanto que, quando o comunismo caiu, num dos maiores milagres históricos de todos os tempos, muitos votaram a praticá-la e milhares de igrejas foram reconstruídas, nem que não fosse não por fé, mas por reafirmação de uma prática milenar estreitamente associada ao próprio conceito de identidade nacional.
Vladimir Putin foi um desses “restauradores” de igrejas e da religião ortodoxa, o que torna mais inacreditável ainda que um míssil russo tenha sido disparado, com a precisão total que hoje têm essas armas, contra a Catedral da Transfiguração, uma igreja um tanto diferente do padrão ortodoxo, com algo do estilo neoclássico — foi um arquiteto italiano que a terminou, no começo do século XIX.
Note-se que a religião ortodoxa está vivendo um cisma irreversível, entre os fiéis e o clero que continuam a seguir o patriarca de Moscou e os que aderiram a uma vertente de orientação ucraniana (e mais um lembrete histórico: foi em Kiev que floresceu a fé cristã nas terras eslavas do leste, expandindo-se depois para um ainda selvagem ducado de Moscou).
“Outra noite de ataque dos monstros”, escreveu no Telegram o governador de Odessa, Oleh Kiper sobre os múltiplos ataques com cinco tipos diferentes de mísseis que deixaram dois mortos e 18 feridos, inclusive três crianças.
Os ataques a Odessa aumentaram, sobretudo contra as instalações portuárias por onde escoava o trigo ucraniano — Putin cancelou o acordo que permitia a exportação, calculando que países mais pobres da África vão sofrer e se tornar emissários de mais gente ainda que procura uma vida melhor na Europa. Tudo o que for para atormentar os inimigos vale, é um dos princípios seguidos pelo sequestrador de criancinhas e bombardeador de igrejas.
Fazem parte dessa pressão declarações de ontem do presidente da Belarus, Alexander Lukashenko, de que os mercenários do Grupo Wagner despachados para seu país depois da mal explicada rebelião liderada por Ievgueni Prigozhin estão cogitando invadir a Polônia.
“Talvez eu não devesse dizer isso, mas vou dizer assim mesmo. Os wagneristas começaram a nos inquietar. “Queremos marchar para o Ocidente, dê a autorização para nós’. E eu pergunto por que querem ir para o Ocidente. ‘Para fazer uma excursão até Varsóvia, até Rzeszow”, disse Lukashenko no começo de uma reunião com Putin em Moscou.
É claro que é tudo combinado. Aumentar a pressão sobre a Polônia é uma tática de Putin que está se intensificando nos últimos dias – e talvez deixe entrever o verdadeiro motivo para deslocar os wagneristas para a Belarus, mais perto do território polonês. Putin até usou o velho truque de atribuir aos adversários as intenções que na verdade são suas e disse que as elites polonesas “estão sonhando com os territórios” da Belarus.
“Qualquer agressão contra a Belarus seria uma agressão contra a Federação Russa”, trovejou Putin.
“Os territórios ocidentais da Polônia foram um presente de Stálin, será que nossos amigos poloneses esqueceram disso?”, provocou. Depois, indecentemente, foi a uma igreja de São Petersburgo com Lukashenko, acendeu uma velha e fez o sinal da cruz à ortodoxa (da direita para a esquerda), como para dizer que pode explodir uma igreja aqui ou ali, mas é um homem de fé. Com o cinismo habitual, o Kremlin atribuiu a destruição da catedral à queda “de um míssil antiaéreo da Ucrânia”.
A Polônia sob domínio comunista depois da Segunda Guerra, realmente “ganhou” uma fatia da Alemanha derrotada, para compensar as grandes perdas territoriais para a Ucrânia e a Belarus. Quem desenhava as fronteiras era Stálin e os comunistas poloneses, ou de qualquer outro país, não tiveram nada a ver com seus desígnios. A invasão russa em vários aspectos “zerou” a animosidade entre a Polônia e a Ucrânia, que remonta a vários séculos, mas refluiu diante do maior de todos os perigos históricos: o imperialismo russo.
O país que, proporcionalmente, mais faz para ajudar a Ucrânia é a Polônia, inclusive por interesse próprio: nem o guarda-chuva nuclear americano, propiciado pelo artigo 5 da carta da Otan sobre a defesa coletiva de cada um de seus membros, alivia a extrema ansiedade dos poloneses com o ressurgimento do expansionismo territorial russo, tendo marcado no inconsciente coletivo o traumatizante passado histórico de séculos de domínio de Moscou.
Insuflar essa ansiedade faz parte da guerra da informação promovida pelos russos. Um de seus capítulos recentes foi propiciado pelo parlamentar Andrei Kartapolov, coronel da reserva. Num programa de televisão, ele deu a entender que a tentativa de rebelião e a transferência de membros do Grupo Wagner para a Belarus fizeram parte de um plano minuciosamente programado.
O objetivo estratégico, disse, seria garantir a ocupação do Corredor de Suwalki, uma faixa territorial de apenas 100 quilômetros, entre a Polônia e a Lituânia, com uma ponta emendada na Belarus e a outra em Kaliningrado, o exclave territorial que a Rússia tem fora de sua massa geográfica — também uma consequência da derrota alemã na II Guerra.
O Corredor de Suwalki já foi chamado de “lugar mais perigoso do mundo”, pelos cenários em que uma III Guerra Mundial começaria ali, com os russos atacando, nem que fosse com mercenários, um território entre países protegidos pela Otan.
“Se alguma coisa acontecer, nós vamos precisar muito do Corredor de Suwalki”, disse Kartapolov, acrescentando que uma força-tarefa formada pelos wagneristas “estaria pronta para tomá-lo em questão de horas”.
É por declarações assim que corrente de analistas desconfia que o golpe de Prigozhin foi uma armação, um jogo combinado. Isso explicaria o maior de todos os mistérios: por que o chefe mercenário continua solto depois de ameaçar o próprio Putin. E por que continua falando nos mesmos termos críticos ao comando das forças armadas que usava antes. Num vídeo filmado na semana passada na Belarus, ele “recepciona” os wagneristas que estão chegando ao país e diz que agora eles vão concentrar forças na África, onde já dão sustentação a três regimes, porque “o que está acontecendo no fronte” na Ucrânia é um vexame.
“Não houve, e nem haverá, redução nenhuma nos nossos programas na África”, jactou-se Prigozhin.
E, nisso, ele está certo, embora possa estar fazendo uma campanha de desinformação em todo o resto.
Durante o stalinismo, a catedral da Transfiguração primeiro foi fechada. Todos os objetos sacros e mobiliário foram tirados dela e até os ladrilhos de mármore do piso e das paredes. Depois da demolição, foi erguido um Memorial a Stálin, de concreto armado, sobre uma parte dela.
Se Stálin passou, e teve o hediondo memorial derrubado, a passagem de Putin será mais breve ainda.
Putin já contou que usa a cruz ortodoxa dada por sua mãe desde que a levou numa visita a Israel, para receber uma benção no Santo Sepulcro. Ela foi encontrada intacta depois de um incêndio no vestiário de uma sauna onde ele a havia guardado. “Foi um milagre”, diz.
Pode ser superstição, pode ser que algo maior esteja envolvido. Pode ser que a cruz que se salvou do fogo queimará no peito do maldito que mandou bombardear uma igreja.