Mais uma vítima? Morte suspeita de outra jovem alimenta revolta no Irã
O regime tem todo controle sobre os meios repressivos, menos a capacidade de sufocar protestos de mulheres que arrancam o pano da cabeça

Nika Shakrami poderia estar nas redes sociais de qualquer país do mundo, com seu cabelo tingido de duas cores, olhos com maquiagem gatinho, roupas pretas e coturnos. Foi encontrada numa morgue pela família desesperada antes do fim de semana em que faria 17 anos.
Segundo a versão oficial, as múltiplas fraturas do corpo da menina desaparecida logo no início da atual onda de protestos no Irã “são consistentes com queda de grande altura”. Mas o atestado de óbito descoberto pela BBC em língua farsi diz que ela morreu de “ferimentos múltiplos causados por golpes de objeto contundente”. A suspeita é que tenha sido presa nos atuais protestos.
A família organizou o funeral em vão: o corpo sumiu e acabou enterrado numa localidade diferente. Membros da família que haviam feito várias acusações contra órgãos repressivos, incluindo a denúncia de que Nika tinha passado cinco dias em poder da Guarda da Revolução, voltaram atrás. Um tio apareceu na televisão confirmando a versão oficial, numa armação tão tosca que dá para ouvir, ao fundo, uma voz dizendo “Fala logo, porcaria”.
Os protestos começaram depois da morte de Mahsa Amini, de 22 anos. Ela estava visitando Teerã com a família e foi interceptada numa saída de metrô por estar usando o obrigatório chador, o lenço que cobre a cabeça, de forma a que aparecessem mechas de cabelo.
Mahsa também era uma jovem bonita e cheia de vida, com o importante detalhe que fazia parte da minoria curda, que é diferente da maioria persa e segue o ramo sunita da religião muçulmana. Os protestos foram muito fortes na região curda, onde os manifestantes chegaram a expulsar a polícia e a tomar o controle de uma cidadezinha.
Mas a revolta certamente ultrapassou fronteiras étnicas e se espalhou por várias cidades iranianas, com cenas quase inacreditáveis de jovens arrancando o chador da cabeça e fazendo fogueiras com o símbolo da opressão.
O slogan mais cantado também atravessou fronteiras: “Mulher, vida, liberdade”. Em farsi, as palavras têm sonoridade parecida: Zan-Zendegi-Azadi. Outra forma de protesto, cortar o cabelo, iniciada por uma iraniana que mora na Turquia, também se disseminou.
Atrizes francesas como Juliette Binoche, Marion Cotillard e Isabelle Hupert apareceram num vídeo em que cortam mechas de cabelo em solidariedade com as iranianas. Uma representante sueca junto ao Parlamento Europeu, de origem iraniana, cortou o cabelo enquanto fazia um discurso.
Mais de cem pessoas já foram mortas nos protestos, o que não é excepcional para os padrões iranianos. Surpreendente tem sido ver meninas do ensino médio aderir ao movimento, sem o véu obrigatório a partir dos sete anos de idade. Num dos vídeos, um grupo de meninas intimida um “bassij”, como são chamados os integrantes da milícia de voluntários que usam motos e agridem quem sai da linha oficial. As meninas jogam garrafas de plástico nele.
Garrafas de plástico não vão derrubar um regime que tem múltiplos recursos repressivos sob seu controle e não há nenhum indício de dissidências internas. O que há são setores da sociedade que não suportam o regime e suas regras inflexíveis. Mulheres na linha de frente dos protestos também são fator um importante, da mesma forma que o apoio dos homens que vão às ruas.
Ironicamente, um dos elementos que alimentou a revolução dos aiatolás, em 1979, foi a modernização forçada pelo regime do xá Reza Pahlavi, que chegou a proibir o uso do chador.
Assim que tomou o poder, levado por ondas de manifestações das quais participavam militantes esquerdistas e de outras correntes, o aiatolá Khomeini instaurou regras fundamentalistas, incluindo a obrigatoriedade do véu feito de um tecido grosso que só deixa o rosto à mostra e de casacos compridos para esconder as formas femininas. Funcionárias públicas e mulheres de outras profissões que não aderiram foram demitidas.
“Não fizemos a revolução para andar para trás”, bradaram iranianas que protestaram contra as novas regras na época. A feminista americana Kate Milliet foi a Teerã participar das manifestações. Acabou presa e mandada de volta aos Estados Unidos. Simone de Beauvoir, que presidia o Comitê Internacional pelos Direitos da Mulher, mandou uma delegação.
Tudo, obviamente, em vão. Os progressistas que, em nome da revolução, abraçaram a tese de que os cabelos femininos emitiam raios malignos que perturbavam os homens, também acabaram varridos do mapa.
Muitos iranianos continuam a apoiar, por motivos religiosos e culturais, o uso de roupas que encobrem a cabeça e o corpo das mulheres, mas as atuais manifestações mostram que existe um número considerável – embora impossível de ser quantificado – que não quer mais saber disso. Também têm uma longa lista de outras reclamações.
A morte absurda de Mahsa Amini catalisou estes sentimentos. Indignação moral da população e inflação de 52% não são uma boa combinação para nenhum governo. O regime não vai cair, mas casos como o de Mahsa e o de Nika Shakrami trazem à tona explosões de uma revolta profunda que pode ser sufocada, como já está acontecendo, mas não vai desaparecer.