Jornalista durante o dia, terrorista durante a noite? O caso é complicado
História do correspondente da Al Jazeera morto em Gaza mostra como acreditamos na versão que for mais conforme com ideias preconcebidas

Anas Al-Sharif era obviamente simpatizante do Hamas – não é preciso mais do que sua foto sorridente, abraçado a Yahya Sinwar, para constatar isso. Era o repórter da Al Jazeera também um militante armado a ponto de constar da lista de pagamentos da organização terrorista? Estaria assim sua morte justificada?
As pessoas que se identificam com a causa palestina dizem que não, e aí se inclui uma boa parte da imprensa que o glorifica como um mártir do jornalismo. Quem vê as razões de Israel para não aceitar viver num mundo em que a tropa do Hamas e também cidadãos comuns cruzaram a fronteira para matar 1,2 mil pessoas em um único dia, tende a acreditar que Al-Sharif tinham dupla função, trabalhando como repórter durante o dia e terrorista durante a noite, “chefe de uma célula encarregada de disparar mísseis”. E não seria o primeiro caso.
No meio das duas posições, estão todo o horror da guerra e as complicações da vida real. Um homem eloquente, bem apessoado e pai dedicado como Sharif, que deixou um testamento por escrito com suas ideias e sua revolta diante dos “corpos destroçados de nossas crianças e nossas mulheres”, também comemorou a matança de 7 de outubro de 2023, postando elogios aos “heróis que continuam matando e capturando”, nove horas depois da invasão.
“Eu fui mantido em cativeiro por um jornalista e seu pai era médico”, postou Shlomi Ziv, um dos quatro reféns libertados em junho do ano passado por uma operação conjunta de vários órgãos militares e de inteligência, depois de 246 dias trancado no apartamento do jornalista Abdallah Aljamal.
“Não existem jornalistas lá que não sejam do Hamas porque eles os matariam”, disse Ziv, com boa dose de razão. Todos sabem, ou deveriam saber, disso.
SEM OPÇÕES
A morte de Sharif e mais cinco contratados da Al Jazeera acontece num momento ruim para Israel, que está claramente perdendo a guerra da opinião pública diante da natural reação ao horrível e prolongado conflito, com enormes perdas entre a população civil, já submetida ao sofrimento de viver em barracas e depender, em grande parte, da comida que chega por caminhões de entidades internacionais.
As reações negativas aumentaram, inclusive entre aliados tradicionais de Israel, como a Alemanha, com a decisão anunciada por Benjamin Netanyahu de ocupar os 25% de Gaza ainda sem a presença das forças armadas, o que evidentemente aumentará o sofrimento da população. A hipótese de que o Hamas seja eliminado de vez é mais irrealista. O primeiro-ministro disse que Israel não quer ocupar Gaza indefinidamente, mas não existem opções.
Quem assumirá o território devastado? Qualquer força estrangeira, mesmo árabe, será tratada como inimiga e é quase impossível, no momento, imaginar essa alternativa. O enviado americano Steven Witcoff discute no momento um plano ambicioso: libertação dos reféns, retirada de Israel, desmilitarização dos grupos armados palestinos, exílio dos líderes militares do Hamas e criação de uma autoridade civil para Gaza. As possibilidades de que isso aconteça são quase inexistentes, embora os Estados Unidos sejam o único país que possa tentar uma guinada dessas dimensões.
Quem criou essa situação terrível foi o Hamas, mas Israel não pode se eximir da responsabilidade que tem sobre a população conquistada.
TODOS SAÍMOS PERDENDO
“Eu confio a vocês a Palestina – a joia da coroa do mundo muçulmano. Confio a vocês as crianças enganadas e inocentes, que nunca tiveram tempo para sonhar ou viver com paz e segurança”, escreveu Sharif no seu comovente testamento.
A realidade, no entanto, diz o contrário: a Palestina é uma encrenca da qual muitos dirigentes árabes querem se manter longe. Não podem, evidentemente, abandonar a causa, mas também não podem resolvê-la nem impor um acordo de criação de um estado independente, em troca do qual Israel teria garantias de que um massacre como o de 7 de outubro não se repetiria.
Entre todas as tragédias, também está a de que pessoas talentosas e inspiradas como o jornalista morto, que tanto poderiam contribuir para um estado palestino bem sucedido, abraçam o terror e o exaltam.
Todos nós perdemos com isso.