Irá Putin ampliar o expansionismo para outros países da “esfera russa”?
Donald Trump já deu o que o líder russo queria na Ucrânia, a reformatação de fronteiras pela força - e pela lógica ele vai quer mais

Munique. Não tem uma pessoa com algum conhecimento de história que não tenha pensado a mesma coisa quando Donald Trump anunciou que vai iniciar negociações para um acordo de paz na Ucrânia que, inevitavelmente, consolidará a tomada de território de um país mais fraco por outro mais forte. Será isso um incentivo para Vladimir Putin avançar sobre outros países que, na sua cabeça, devem fazer parte da “esfera russa”, ou mundo russo, como diz.
De repente, os dias ficaram mais longos e as noites mais intranquilas na pequena Moldóvia, nos três Países Bálticos e até na Polônia. Ou talvez mais além deles. Sem as garantias da aliança atlântica, bancadas pelos Estados Unidos, tudo fica mais perto do terreno do possível.
As comparações com Munique podem soar exageradas, mas os paralelos são inevitáveis com o documento assinado em 30 de setembro de 1938 em que as duas grandes potências europeias, Grã-Bretanha e França, imaginavam conseguir a paz em troca de concessões a um certo alemão com ideias fixas sobre a grandeza teutônica. Um naco da Checoslováquia foi cedido à Alemanha nazista, um preço, para usar o adjetivo do momento, “realista”.
Naquele momento, Neville Chamberlain, o primeiro-ministro britânico, foi aplaudido e comemorado. O povo ainda tinha as memórias traumatizantes da I Guerra Mundial e não queria saber de mais um conflito no coração da Europa. Sacrificando a honra em nome da paz, segundo a frase famosa, Chamberlain acabou sem uma coisa nem outra. Seis meses depois, Hitler mandou invadir o resto da Checoslováquia. No ano seguinte, a Polônia, desencadeando a guerra que ninguém queria, mas assim mesmo acabou tendo.
EXPURGOS STALINISTAS
Como saber quando é “realista” reconhecer, por exemplo, que a Ucrânia não vai retomar os 20% de seu território tomados pela Rússia e é melhor acabar agora com a matança mútua, que poderia se arrastar por mais alguns anos? Ou quando resistir, contra todas as possibilidades, porque é injusto, é errado e é perigoso?
“A independência e a integridade territorial da Ucrânia são incondicionais. Nossa prioridade agora deve ser fortalecer a Ucrânia e prover robustas garantias de segurança”, postou a chefe da diplomacia da União Europeia, Kaja Kallas. As duas frases são incompatíveis – e a ex-primeira ministra estoniana tem condições excelentes para saber disso. Em 1949, a família foi barbaramente vitimada pelos expurgos stalinistas. Sua bisavó, sua avó e sua mãe, então de apenas seis meses, foram deportadas para a Sibéria, num dos deslocamentos populacionais feitos pela Rússia comunista, com trilhas de sofrimento e sangue envolvendo milhões e milhões de pessoas.
“Nossas atitudes em relação à Rússia são baseadas na experiência empírica”, já definiu, com analítica frieza, o ex-presidente estoniano Toomas Hendrik. “Deportações em massa, estupros, assassinatos, torturas – podem ir conferir os lugares onde os russos tinham câmaras de tortura para os estonianos. Estivemos lá, sabemos como é”.
A Estônia tem uma grande fragilidade, além do pequeno tamanho e da minúscula população de 1,3 milhão de habitantes. Por causa dos deslocamentos populacionais, descendentes de russos enviados para lá na época do stalinismo são 22% da população. Podem fornecer o mesmo pretexto do início do expansionismo russo na Ucrânia, sob a desculpa de proteger a população que fala russo – e, portanto, é considerada russa.
Muitos dos países que viveram à sombra do império russo, seja literalmente imperial, seja na era comunista, temem que as garantias providas pela Otan – ou seja, os Estados Unidos – não sejam mais inquebrantáveis. Trump está desmontando todo o arcabouço montado pelos próprios americanos depois da II Guerra.
GUERRA DE PROPAGANDA
Em alguns pontos, tem razão: a conta de manter um aparato de defesa à altura do russo foi desproporcionalmente assumida pelos Estados Unidos. Apenas dois países europeus, a Grã-Bretanha e a França, têm arsenais nucleares próprios, mas nem de longe comparáveis ao da Rússia.
Em outros pontos, Trump está errado. Putin não vai ficar feliz e agradecido pelo acordo com a Ucrânia. Vai querer ganhar mais e tem até uma “justificativa” ideológica, provido em parte pelo filósofo Alexander Dugin, um brilhante e ensandecido – principalmente depois que sua filha Daria foi morta num atentado ucraniano dirigido a ele – propagador de uma política expansionista chamada neo-eurasianismo. Até no Brasil ele tem seguidores.
O pânico mal disfarçado que se abateu sobre a Europa explica tantas alusões a Munique. Desde o começo, todos sabiam que nem os Estados Unidos e muito menos os países europeus arriscariam desencadear uma guerra nuclear por causa da Ucrânia, o que seria o resultado final de uma intervenção direta. Os russos jogaram muito bem com isso, martelando na possibilidade da guerra do fim dos tempos. Também foram brilhantes na guerra da propaganda, convencendo a direita populista americana de que a causa ucraniana era contra seus interesses.
E não tem ninguém nem remotamente parecido com Winston Churchill para combater a política do apaziguamento refletida no Acordo de Munique. Numa pequena ironia histórica, a cúpula da Otan também foi em Munique. O ex-secretário da Defesa britânico Ben Wallace acha que não só o restante da Ucrânia e outros países da Europa do Leste estão numa situação mais perigosa, mas Putin também passará a cobiçar o Alasca e territórios do Ártico. O apetite do urso está sendo cultivado.