Intolerância: judeus ultraortodoxos cospem em cristãos em Jerusalém
É apenas um exemplo do radicalismo religioso que está provocando graves divisões em Israel e alimenta uma crise política que não parece ter saída
Para muitos judeus, Israel proporciona um ambiente impensável há menos de um século: o ano é 5784, o dia do descanso semanal é no sábado, festividades religiosas judaicas são comemoradas, com feriados, até por quem faz isso para manter a tradição, não por fé.
O contraponto aos milagres de ser maioria para um povo que viveu milênios como minoria é o fanatismo. Há correntes entre os mais religiosos que enveredaram para o radicalismo e chegam a pregar o que já foi chamado de supremacismo judeu, um desenvolvimento chocante para os que se dedicam a estudar a religião judaica.
Um exemplo dessas convicções foi visto num incidente filmado no dia em que se comemora o Sucôt, ou Festa dos Tabernáculos — uma das várias ocasiões em que tradições judaicas e cristãs se superpõem, mostrando a origem bíblica comum. Os judeus mais religiosos fazem cabaninhas de ramos, para cumprir o mandato divino de lembrar que “eu fiz habitar os filhos de Israel em tendas quando os tirei da terra do Egito”, e muitos levam folhas de palmeira em procissões pelas ruas, lembrando a tradição incorporada ao Domingo de Ramos.
Muitos cristãos, inclusive brasileiros, viajam a Jerusalém e foi aí que aconteceu o incidente inacreditável, embora não sem precedentes. Um grupo de cristãos asiáticos saiu por uma rua levando uma cruz de grande tamanho quando cruzou com ultraortodoxos vindos em sentido contrário. Alguns adultos cuspiram no chão diante dos cristãos, sendo imitados por crianças.
Houve condenações unânimes, fora dos círculos dos radicais, e cinco homens foram detidos, um por ter participado do episódio original e mais quatro por novos incidentes da mesma natureza. Entre estes, estudantes que obedecem ao rabino Natan Rothman, irmão de um parlamentar do partido Sionismo Religioso, Simcha Rothman.
O parlamentar afirmou que o incidente, embora condenável, foi transformado em algo “fora de proporção”. Percebe-se aí o tipo de distorção que os radicais exploram, a ponto de ter levado a polícia a formar um esquadrão de investigadores só para lidar “com incidentes envolvendo cuspir e praticar atos de ódio contra cristãos”.
A Rádio do Exército ouviu alguns fundamentalistas que confirmaram com orgulho que cospem em cristãos e em cruzes. “Eles nos matavam e massacravam”, disse um deles, anonimamente. “Está escrito na Torá que os filhos pagarão pelos pecados dos pais”.
Os atos radicais têm como pano de fundo o gravíssimo racha entre ultraortodoxos e sionistas extremistas, geralmente vivendo em territórios contestados, e a outra parte da população israelense. O agente detonador desse cisma foi a reforma do judiciário promovida pelo primeiro-ministro Benjamim Netanyahu, que depende dos radicais religiosos para a sobrevivência de seu governo — e talvez para escapar dos processos por corrupção que correm contra ele na justiça.
Os ultraortodoxos militantes — existem correntes que não se envolvem em política — dizem que são discriminados pelos judeus laicos, com simpatias políticas mais à esquerda. Em alguns aspectos, têm razão. Os pioneiros do Estado de Israel não queriam ser identificados com judeus “atrasados”, apegados a hábitos que pareciam deslocados de dedicação exclusiva a uma versão exigente e integral da prática religiosa. Barbaramente chacinados pelos nazistas, poucas centenas emigraram para o novo estado judeu. A série Shtisel, da Netflix, é uma das várias e ótimas produções israelenses que mostra um lado humanizado e ao mesmo tempo realista da vida dessas comunidades.
Em outros aspectos, é compreensível a rejeição que despertam com exigências como a estrita separação de mulheres até em transportes públicos usados por todos e a observância forçada da paralisação total de atividades durante o shabá.
Um exemplo do tipo de atitude que provoca repúdio: o rabino-chefe dos sefarditas, os judeus descendentes dos exilados da Espanha e de Portugal, Yitzhak Yosef, disse que os judeus laicos ficam “burros” por não comerem de acordo com os preceitos alimentares religiosos. Ele também afirmou que os não religiosos têm “ciúmes” dos haredim, a designação genérica dada aos ultraortodoxos.
Dá para imaginar as reações que provocou. “A única burrice é que o público laico financia e paga o salário de uma pessoa atrasada como você”, rugiu Avigdor Lieberman, que é da direita sionista não religiosa, um emigrado “russo”, categoria frequentemente atacada pelos ultraortodoxos por não seguir nada dos mandamentos talmúdicos.
Cada um desses absurdos aprofunda o cisma e os ódios recíprocos. As agressões a cristãos são uma parte pequena, mas simbólica — e importante não só para a imagem que Israel quer passar, como pelo apoio crucial dos evangélicos americanos. Entre si, judeus agridem judeus com palavras e atos muito piores. “Traidores” e “terroristas” são apenas alguns deles.
Israel precisa de um líder que ajude o país a transcender essas divisões. Obviamente, elas são comemoradas por todos os inimigos do país, e eles não são poucos.
Não existe nenhuma figura no panorama político atual que pareça ter a combinação de visão, credibilidade e liderança necessária para superar os ódios recíprocos e reconstruir a ideia de um país para todos os judeus, onde as minorias de outras religiões sejam respeitadas. É um momento ruim para qualquer país quando uma metade odeia e exclui a outra. Para Israel, é catastrófico.