Inglaterra: não basta torcer pelo dragão, é preciso detonar São Jorge
Repúdio das elites ao nacionalismo, representado pelo santo guerreiro, impulsiona voto pela saída da União Europeia

Um dos maiores mistérios atuais, para quem vê de fora, é como tanta gente no Reino Unido está disposta a votar para sair da União Europeia. Não existe nenhuma crise de grandes proporções, a economia vai bem (melhor do que entre todos os outros integrantes do grupo), as vantagens do comércio sem barreiras são auto-evidentes e, especialmente em Londres, existe um dinamismo palpável.
Sem contar que mais de um milhão de britânicos, na maioria aposentados, vivem na Espanha e na França, principalmente, como estivessem em casa, aproveitando os preços mais baixos e o sol mais alto.
No momento, existe um empate entre os dois lados no plebiscito do dia 23. Só a possibilidade de que o voto pela saída ganhe provocou nas últimas semanas uma fuga de capital na casa dos 65 milhões de libras – quase seis vezes mais em reais, se é que tem algum sentido fazer a conversão.
Os motivos racionais são conhecidos. O que mais pesa é a grande quantidade de estrangeiros que veio para o Reino Unido em busca de renda e benefícios sociais maiores. Primeiro poloneses, depois búlgaros e romenos, entre outros, provenientes especialmente da Europa Oriental, desequilibraram o mercado de trabalho, em especial entre pessoas mais velhas e da área da construção civil. Do outro lado, o mercado financeiro e a indústria criativa atraíram a nata de profissionais de todo mundo – e poucos reclamam disso.
Mas pesam também no voto pela saída fatores que operam num nível mais simbólico, como a sensação de que o estado nacional está se diluindo. É como se muita gente sentisse que precisa rejeitar suas origens e seu país. E aí falamos especialmente da Inglaterra, a força dominante que unificou, na marra ou pela atração natural dos mais bem-sucedidos, os outros integrantes do Reino: País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte.
O processo só terminou há 300 anos e deixou, entre os agregados, muitos resquícios de rebelião. Na Inglaterra, o desejo de manter a união nem sempre tranquila e as mudanças históricas do último século impulsionaram uma espécie de culto anti-inglês. Tudo o que evoque a supremacia passada é oficialmente reprimido, inclusive noções arraigadas como patriotismo e nacionalismo.
Todos sabemos os males que estas pulsões, em descontrole, podem provocar. Agora, porém está acontecendo o contrário em muitos países europeus e até nos Estados Unidos, o país que nasceu de uma espécie de culto a si mesmo.
Desprezar sentimentos nacionais e considerar a todos, sem diferença de nacionalidade, cidadãos do mundo (principalmente para quem é do primeiro mundo) são atitudes que despertaram uma onda de rejeição. Uma das razões é que todos têm que pagar a conta dos benefícios sem fronteiras. Outra, é que muita gente gosta de ter um país, uma bandeira, um hino e um time de futebol.
No caso dos ingleses, isso tudo é representado pela cruz de São Jorge: vermelha sobre fundo branco. Empunhá-la também é restrito a praticamente duas categorias, classes sociais inferiores e torcedores fanáticos, embora não daqueles de cabeça raspada que botam para quebrar.
Vestir uma fantasia de cruzado – túnica branca com a cruz vermelha, e alguma coisa parecida com armadura – virou um hábito divertido nos grandes campeonatos. Mas não impune. Um comentarista esportivo da BBC, a emissora pública que, na mais famosa das definições, torceria pelo dragão se fosse transmitir a luta de São Jorge, escreveu uma contribuição encimada por uma pergunta instigante: é errado se vestir como cruzado para um jogo da Inglaterra?
Adivinhem qual a resposta? Pacientemente, como se falasse com crianças bobinhas, ou fizesse graça para os colegas, ele explicou que as cruzadas pretendiam “reconquistar o que consideravam terra cristã” e durante elas houve “violência brutal cometida por todas as partes”. Já deu para perceber de quem foi a culpa por acontecimentos históricos datados de mil a oitocentos anos atrás.
E se por acaso a intenção dos torcedores for se vestir como São Jorge, estarão cometendo outro erro horripilante. A representação popular do santo, tal como feita pelos ingleses, com cruz no peito e cavalo branco, é equivocadíssima. Até a armadura está errada, adverte o comentarista.
Evocar as cruzadas como exemplo das maldades cometidas pelo cristianismo – e dizer, indiretamente, que os fanáticos muçulmanos do século XXI estão na mesma categoria – é uma maluquice histórica e moral que já foi cometida até pelo presidente Barack Obama.
Mas nem Obama chegaria ao ponto de policiar fantasias de torcedores de futebol e querer que os ingleses repudiem São Jorge. Mexer com o santo guerreiro dá a maior confusão. Embora as elites arrogantes que caíram de um cavalo metafórico diante do tamanho do voto pela saída da União Europeia, mesmo que acabe derrotado, não façam a menor ideia disso.