Heróis russos trancados na cadeia e monstros que decapitam presos
A mistura de horror e admiração que a Rússia desperta, ainda mais depois de ter desencadeado uma guerra injusta, ganha novos capítulos

A especulação de que Vladimir Putin está tratando um câncer com quimioterapia, os boatos sobre tramoias no topo da cúpula do Kremlin e dados negativos sobre a capacidade bélica da Ucrânia ocuparam nos últimos dias o noticiário estrangeiro (o nacional estava dominado por um grave surto de insanidade) — e mais ainda pela forma quase inacreditável, se não suspeita, como foram revelados, por um moleque de 21 anos com acesso a segredos de Estado e que queria fazer bonito diante dos interlocutores numa rede social obscura.
São tão bombásticos, principalmente pela proveniência, os incomparáveis serviços de espionagem eletrônica e humana dos Estados Unidos, que acabaram obscurecendo acontecimentos importantes vindos da Rússia e dos russos estacionados na Ucrânia invadida.
Dois deles se referem a homens com estatura comparável à de dissidentes que entraram para a história com a aura de reverência reservada aos que enfrentam gigantes autoritários tão incomparavelmente poderosos que se erguer contra eles parece coisa de heróis.
Um é o mais conhecido, Alexei Navalny. Envenenado com novichok, um agente banido de guerra biológica, ele foi salvo ao ser mandado para tratamento na Alemanha. Com uma coragem difícil até de imaginar, ele voltou para a Rússia plenamente consciente de que seria preso, submetido a um julgamento farsesco e encarcerado por muito tempo.
Foi exatamente o que aconteceu e, agora, seus contatos denunciam que ele mostra indícios de estar sofrendo um novo envenenamento, mais gradual, o que faz com que sofra sérios problemas de saúde. Já emagreceu oito quilos e continua mantido numa cela de castigo, onde é difícil até enxergar para poder escrever — seu único método de comunicação com o mundo exterior.
Minar a saúde física e mental de um homem que já se mostrou formidavelmente forte segue uma tática bárbara e conhecida que só derrapa na coragem moral dos poucos que erguem a voz — e colocam em jogo a própria vida — contra o poder absoluto de Putin.
A mesma coragem extraordinária foi demonstrada por Vladimir Kara-Murza ao ser condenado na semana passada a nada menos de 25 anos de cadeia, sob acusações de traição e de desacreditar a intervenção russa na Ucrânia.
As últimas declarações que fez ao vivo, na jaula onde ficam os réus, foram de arrepiar.
“Eu mantenho todas as palavras que já disse e aquelas que este tribunal me acusa de ter dito. Só me arrependo de uma coisa: não ter conseguido convencer meus compatriotas e políticos de países democráticos do perigo que o regime do Kremlin representa para a Rússia e para o mundo.”
Kara-Murza (o sobrenome diferente é de origem tártara) entrou para a política através de Boris Nemtsov, o físico e militante da democracia, assassinado a tiros bem no centro de Moscou, junto à muralha do Kremlin, em 2014. Como seu mentor, Kara-Murza, de 41 anos, usa palavras fortes para descrever a Rússia de Putin.
“Depois de duas décadas na política russa, achei que nada mais poderia me surpreender. Estava errado. Tenho que admitir que fui surpreendido pelo fato de que meu julgamento, em 2023, ultrapassou até os ‘julgamentos’ de dissidentes soviéticos nos anos 1960 e 1970, na falta de transparência e no desprezo pelas normas jurídicas, para não mencionar a dureza da sentença pedida pela promotoria e o uso de termos como ‘inimigo do Estado’. Meu julgamento foi um retrocesso aos anos 1930. Como historiador, acho que isso merece uma reflexão”.
Raramente alguém que está entrando num labirinto de 25 anos sob a designação stalinista de ‘inimigo do Estado” tem tanta lucidez.
A coragem de oposicionistas como Navalny e Kara-Murza representa raros pontos brilhantes num quadro geral sombrio e deprimente, com o apoio maciço dos russos a uma guerra pintada pela propaganda oficial como de defesa da pátria e às atrocidades cometidas em seu nome.
Enquanto Kara-Murza era condenado, circularam um vídeo mostrando a horripilante cena de decapitação, a faca, de um prisioneiro de guerra ucraniano em Bakhmut, a cidade que continua a ser disputada pelos dois lados. Tendo aderido aos métodos da organização que foi combater na Síria, os ultrafundamentalistas do ISIS, mercenários a serviço do Grupo Wagner também apareceram com cabeças de prisioneiros ucranianos espetadas em estacas.
Outras cenas hediondas mostram corpos decapitados com a mãos decepadas. Alguns vídeos parecem ter sido feitos no ano passado, pois têm ao fundo vegetação verdejante. Mesmo com o início da primavera, a Ucrânia continua coberta de neve ou da lama que seu derretimento causa.
“Ninguém no mundo pode ignorar uma coisa: a facilidade com que estes animais matam”, disse, exasperado, o presidente Volodymyr Zelensky. “O mundo precisa ver este vídeo, da execução de um prisioneiro ucraniano. É um vídeo da Rússia como ela é, do tipo de criaturas que eles são”.
Na condição de espectadores distantes aqui no Brasil, envergonhados e humilhados por uma política externa da infâmia, propalada em declarações indecentes que procuram culpabilizar a Ucrânia por sua própria invasão, como entender, hoje, um país que invade um vizinho, mata inocentes, tortura civis, sequestra crianças, bombardeia hospitais e decapita prisioneiros de guerra? Existe uma forma de conciliar a bravura de oposicionistas como Navalny e Kara-Murza e o horror da “Rússia como ela é”, nas palavras de Zelensky?
Para tantas vítimas da vileza de Putin, é impossível pensar nisso agora, mas a salvação moral da Rússia está nas mãos de alguns poucos, muito poucos.
“Mesmo hoje, mesmo com toda a escuridão à nossa volta, mesmo sentado nessa jaula, amo meu país e acredito no nosso povo”, disse Kara-Murza , que enfrentou o julgamento de fancaria com um sorriso no rosto.
“Chegará o dia em que nossa sociedade abrirá os olhos e se horrorizará com os crimes terríveis cometidos em seu nome. Dessa compreensão, virá o longo e difícil, mas vital, caminho para a restauração da Rússia e começará se retorno à comunidade das nações civilizadas”.
Só visionários conseguem enxergar isso e fazer até os mais céticos acreditarem, nem que seja só um pouco, que será possível.