Hamas ataca moradores que fogem em Gaza, mostrando quadro indefinido
Israel ganha sucessivas batalhas táticas, mas a vitória estratégica continua distante e quem mais sofre são os moradores do território
Israel está ganhando ou perdendo em Gaza? Os sucessivos feitos no campo de batalha, culminando com a morte de Yahya Sinwar, têm como contrapartida uma realidade já definida como uma luta de Sísifo: tudo tem que ser continuamente refeito. É isso que está acontecendo agora no norte do território, onde homens do Hamas atacam com pauladas e até tiros moradores que procuram seguir as ordens das Forças de Defesa de Israel e sair de lá antes de novos ataques.
Uma foto viralizou nas redes: a cabo Shai Gilboa prestando primeiros socorros a uma mulher com o rosto ensanguentado. “Eles amaldiçoam o Hamas na nossa frente”, afirmou a socorrista.
As Forças de Defesa de Israel mostraram recentemente uma conversa entre um habitante da região norte e um militar encarregado de operações de inteligência em campo: “O problema é que nós atendemos as instruções e procuramos ir para as zonas humanitárias, mas tem gente que vem atrás de nós e bate com pedaços de pau. Dizem para voltarmos para casa. O que podemos fazer?”.
Isso confirma dois fatos conhecidos. Primeiro, o Hamas usa os moradores de Gaza como instrumentos de propaganda e quer que sejam bombardeados, para aumentar as condenações a Israel. Segundo, mesmo profundamente atingido, ainda articula reações e usa métodos típicos de guerra de guerrilha, que não alteram a predominância de Israel, mas também não permitem chegar a um ponto de declarar vitória.
Por exemplo, o oficial israelense de patente mais alta a morrer em combate, o coronel Ehsan Daqsa, um membro da comunidade religiosa drusa, que é árabe e de uma seita muçulmana, embora seja chamada em Israel de unitarista, foi atingido na segunda-feira por um artefato explosivo escondido no chão. Dois outros oficiais sofreram extensos ferimentos. Os três haviam saído de seus tanques para se reunir num ponto de observação.
GUERRA PERPÉTUA
O analista militar Seth Frantzman, do Jerusalem Post, resumiu assim a situação: “A questão agora em Gaza é se a morte de Sinwar infligirá uma derrota estratégica ao Hamas. Israel tem combatido uma guerra tática em Gaza na qual alcançou numerosas vitórias, mas não derrotou o Hamas completamente. A falta de uma estratégia clara para o dia seguinte também contribui para o sentimento entre a liderança do Hamas no exterior de que eles podem aguentar firme e sobreviver”.
Essa sensação é reforçada pelo fato de que estejam, hoje, limitados a países como o Catar e a Turquia, onde Israel nunca poderia repetir o que fez com Ismail Haniyeh no Irã, explodindo uma bomba debaixo de sua cama num prédio onde se hospedavam amigos do regime.
É aí que entra o maior dilema para as lideranças militares e civis de Israel: continuar uma espécie de guerra perpétua em Gaza, já sabendo que os reféns remanescentes nunca serão libertados e não haverá, como nas guerras convencionais, um momento em que o inimigo admite a derrota e assina a rendição, ou arriscar um acordo de extrema complexidade, que está sendo desenvolvido pelos Estados Unidos.
MUDANÇA DE OPINIÃO
Isso envolveria definir quem assume a autoridade administrativa de Gaza. Se moradores comuns estão levando pauladas e até tiros por simplesmente tentarem salvar suas vidas, imaginem o que aconteceria com quem se atrevesse a ser uma alternativa ao Hamas. Corre que, há alguns meses, o líder de uma tribo de Gaza que parecia se inclinar a negociações, foi sequestrado e decapitado pelo Hamas.
E a população, como reagiria a uma nova ordem? Todos sabem que o ódio a Israel é intenso e qualquer candidato a administrador que parecesse ser coordenado com os israelenses seria rejeitado. Ou talvez a realidade terrível da vida num pequeno território em guerra esteja provocando mudanças?
Uma pesquisa do mês passado mostra que as opiniões estão mudando. Agora, 57% acham que a decisão de desfechar o massacre de 7 de outubro, com a consequente reação israelense, foi equivocada, contra 39% que continuam a apoiá-la. O número é exatamente o oposto do que foi levantado numa pesquisa em junho. As pesquisas também mostram que os palestinos continuam a achar que não houve as amplamente registradas atrocidades que deixaram 1,2 mil chacinados, dos quais 320 eram mulheres e meninas, e mais de 250 sequestrados.
Os países árabes cujos governos torcem nada disfarçadamente pela derrota do Hamas e do Hezbollah, como representantes das duas vertentes de fundamentalismo muçulmano que os ameaçam, o sunita e o xiita, vão ter que ajudar muito. O plano que reúne essa frente, além de “levar em conta as posições de Israel”, será apresentado depois da eleição do próximo dia 5 por Antony Blinken, o secretário de Estado, mesmo enfraquecido por representar um governo em pleno ocaso. Blinken falou ontem com Netanyahu e seguiu para países aliados da região.
“UM PROBLEMA ENORME”
No novo livro de Bob Woodward, sobre as guerras recentes envolvendo os Estados Unidos, o príncipe Mohammed Bin Salman, governante da Arábia Saudita, aparece num diálogo revelador com Blinken. O secretário de Estado pergunta se os sauditas tolerariam que, para fazer um ampla acordo, Israel voltasse periodicamente a interferir em Gaza – o que parece ser a situação inescapável, tal como hoje delineada.
“Eles podem voltar em seis meses, um ano, mas não imediatamente depois que eu colocar minha assinatura em uma coisa assim”, respondeu o príncipe.
“Setenta por cento do meu povo é mais jovem do que eu. A maioria não sabia muito sobre a questão palestina. E estão sendo introduzidos nela através desse conflito. É um problema enorme”.
“Eu pessoalmente ligo para um estado palestino? Não ligo, mas o meu povo sim, então tenho que garantir algo que seja significativo”.
O que seria exatamente “significativo” é uma questão tão ampla que desafia os mais otimistas. Mas definitivamente deveria trazer uma estabilização que não deixe uma população inteira ser perseguida a pauladas ou tiros quando procura se proteger da guerra desencadeada pelos líderes que tanto apoiavam, embora agora estejam deixando de achar tão certos assim.